Paisagem
Agnaldo Farias

A paisagem é o enigma primordial. Desde sempre nos rodeia, infatigável na sua extensão e variabilidade. A paisagem é anterior a nós e alguém já terá se dado conta, não sem surpresa, que no fundo ela é sempre a mesma, embora varie consoante as horas do dia, as estações do ano, do que nela se plantou ou se nela choveu, ou se está seca, como quando o sol cai a pino ou jaz encoberto por nuvens pesadas que então derrubam fazendo deslizar suas sombras gordas e fugidias.

Quem, como Phíleas Fogg, se dispôs a efetuar o périplo pelo planeta, numa linha tão reta quanto possível, quem avançou por sobre ela, constatou, ao cabo de um longo tempo (80 dias, nesse caso), que por mais que tenha se deslocado, deslocou-se sempre sobre ela. Mas será preciso ir tão longe? Que a paisagem é sempre mutável embora seja sempre a mesma, já haviam notado até os homens pouco afeitos a aventuras. De fato, mesmo as montanhas escarpadas que perfazem o litoral do Rio de Janeiro, a “envergadura desarticulada das serras, riçado de cumeadas e corroído de angras”
(1), não passam do mesmo chão macio e liso que emerge suavemente sob o movimento das ondas, afofa-se ainda mais em areia seca e solta para então, repentinamente, arremeter-se para o alto, transmutado em pedra, ornado de vegetação densa, para descambar mais adiante, desatando-se em vales e planícies, reiventando-se em novas altitudes, dilatando-se em direção ao oeste. E mesmo no sentido contrário, avançando sobre o mar, nota-se que o jogo perpétuo e elástico de seus picos e vales translúcidos, são reverberações de uma topografia submersa, das depressões ocultas que às vezes iça-se sob a forma de ilhas que mais parecem porções flutuantes de terra.

Diante dessas considerações de que trata Edu Coimbra quando trata da paisagem? Trata dela mesma ou dos recursos de linguagem, isto é, das representações – sejam elas fotografias, desenhos, pinturas-, que dispomos para tratar dela? Se for assim trata-a à distância. E haveria outra forma de tratá-la senão à distância? Segundo o artista, sim. É o que afirmam suas instalações ou, dito de um modo menos técnico, suas intervenções em ambientes fechados ou em áreas públicas, ou até mesmo em seus objetos, paisagens em miniatura que uma leitura superficial sugerem ser maquetes, representações, portanto. Mas não é disso que se trata posto que são paisagens em outra escala que não aquela a que estamos acostumados.

Nos dois casos o artista parece defender a ideia que tanto é tangível à paisagem exterior, aquela pela qual se passeia ao mesmo tempo em que se a vai colhendo com os olhos, quanto às representações da paisagem. Mais do que isso, trata-se de dois termos indissociáveis. Isto porque a pele do mundo é igualmente constituída pelas ideias e imagens que lhes são extraídas. Aquele que passeia pelo mundo é simultânea e inevitavelmente centro desse mundo; é quem o funda. Trata-se tanto de um problema de posição quanto um problema da ordem do sentido; aquele para quem a paisagem se dispõe ao redor é o mesmo que despeja significados nela. É quem a lê. É quem dela se utiliza para não se perder.

A questão é que ideias e imagens possuem autonomia em relação àquilo que representam. Têm a arbitrariedade própria da linguagem, possuem uma lógica tão rigorosa quanto flexível. Basta tensioná-las, invertê-las, lê-las de traz para diante como um palíndromo, para que desandem e apontem para aquilo que até então não se podia imaginar; para o significado variar em outra direção, insólita, absurda.

Realizado no ano de 2000, Túnel coloca-nos diante dessa situação de reversibilidade. Trata-se de um trem trespassando uma montanha. Trespassando porquanto se de um lado o que se vê é um túnel por onde o trem já vai entrando até a metade, do outro lado o que se tem é a montanha sendo arrebentada pela frente do trem. Cultura e natureza. A cultura como um aríete que fende a natureza a golpes de martelo. Ou seria a natureza que, insubmissa, desaba sobre o artifício? O trilho do trem sugere continuidade. Segundo as leis da geometria as linhas paralelas encontram-se no infinito. O trem está indo mas poderá voltar. Trata-se, portanto, de uma situação temporária embora dramaticamente essencial. Um momento de paralisia num percurso maior. Como um bloqueio numa ponte atravessada sobre um abismo; como uma fala que repentinamente resolve obstruir a passagem do sentido do qual ela deveria ser a neutra portadora.

Porque depende de nós, a paisagem é um campo tão frágil quanto os meios dos quais nos valemos para mover-nos por ela. Tão delicada quanto a mais abstrata das representações. Em Horizontes assistimos o chão romper-se. A casca que julgávamos rígida, primeira camada de um mundo denso, é uma película que esconde um céu subterrâneo. A paisagem é assim um plano fino que separa o céu do céu. Segundo esse trabalho, caminhamos em suspensão, comprimidos pelo vazio. Feitas as contas essa situação não difere de quando estamos de pé circundado pela paisagem, reduzidos a uma linha vertical por onde escoa tudo que está em volta.

Túnel e Horizontes têm a mobilidade das representações, são dispositivos cujas engrenagens podem ser montadas e remontadas com resultados diferentes. Como as insólitas imagens – série Paisagens – realizadas em papel fotográfico e aplicadas sobre caixas de luz. O formato grande (120 cm x 200 cm), ao qual concorre a espessura de 17 cm, por si só desloca o resultado para além de uma imagem trivial. De plano epidérmico e verossímil temos em seu lugar uma imagem-objeto. Como se isto não bastasse o artista desconstrói a imagem da paisagem realizando arranjos inusitados, demonstrando-a não como produto subordinado a referência exterior de onde ela se originou, mas como um jogo propício a resultados ambivalentes, como as duas porções de horizontes com o céu no meio, como o renque de copas de árvores que se abre em leque contra o azul do céu. Essas obras como que se recusam a balizar nossos movimentos, não mais reiteram nossa posição no mundo. Nelas não valem mais as polaridades entre alto e baixo, leve e pesado. Seguem sendo paisagens, mas paisagens inventadas.

Perpassa a poética de Edu Coimbra a ideia de que ao sobrepormos a linguagem ao mundo, termina-se por efetuar uma inevitável confusão entre ambos os termos. Este é o caso dos Desenhos em branco cujas linhas são feitas a partir de pequenas ripas de madeira. A idealidade do branco e da geometria não chega a impedir seu desejo de ganhar corpo. O desenho, no geral construções imprevistas, opções geométricas absurdas desde que cotejadas às normas de representação, converte-se em coisa, objeto tangível.

A linguagem e o mundo são férteis em frestas. Como o solo que se abre para a passagem do céu, como a série de gavetas brancas que se projetam das paredes, contrariando sua aparente integridade de plano branco e opaco. Há uma zona por onde o mistério se insinua. Como as cores contidas nas quatro gavetas entreabertas em cada uma das faces do trabalho Criado-mudo. Gavetas são signos de interioridade, lugar de coisas ocultas, guardadas ou mesmo esquecidas. Mas, visto de cima, o trabalho nos mostra seu interior. Explica-nos que o volume branco irá se desfazer com o deslizamento sucessivo das gavetas, que de cada uma delas transbordarão cores, que essas contagiarão o ambiente ao seu redor.

2000

obs: texto escrito para o catálogo da exposição Paisagem Local, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, MAM-Rio, em julho de 2000

nota:
1  Euclides da Cunha em “Os Sertões”



voltar - preparar para impressão