Ah! As nuvens
Glória Ferreira

Não são nuvens derramadeiras, nem cirros-estratos, ou altos-cúmulos, mas nuvens das camadas inferiores da atmosfera, tal como os estratos e os estratos-cúmulos, que as fotografias, nos trabalhos de Eduardo Coimbra, retratam. Para além da referência à catalogação científica, poderíamos também recorrer a uma tipologia da representação das nuvens, tal a sua presença ao longo da história da arte: nuvem-El Greco, nuvem-Turner, nuvem-Magritte. Em Théroire du nuage, por exemplo, Hubert Damisch, desenvolve uma história da pintura tomando a nuvem como elemento da semiologia pictórica, e assinala que suas funções variam segundo a época e convocam domínios diversos na estrutura da representação. Não menos presentes, elas povoam as imagens de reprodução técnica, sendo as Equivalências, de Alfred Stieglitz, um momento singular. Singular pois são fragmentos que evidenciam o corte e o seu entrelaçamento com o infinito, desvelando assim sua condição de fotografia.

Como a fotografia, sem forma a priori, linha, contorno ou figura, a nuvem funciona como traço, efeito visível de outros fenômenos, no caso os atmosféricos, que não se manifestam ao olhar (o vento, por exemplo). Embora sujeita a um constante devir, a nuvem capta e reflete, em sua própria matéria, como diz Philippe Dubois, as variações luminosas que a cercam: "Ambos, nuvem e fotografia, são portanto, autênticas 'máquinas de luz', véus, tramas, armadilhas, reveladores, telas, cortinas, espectros, fantasmas de luz"
(1). Equivalências, como sublinha o título da série de Stieglitz.

Não fosse Alfred Stieglitz célebre por suas fotos, o seria pelo intenso trabalho de difusão da arte moderna e do combate pelo reconhecimento da fotografia artística enquanto arte autônoma. Em relação às Equivalências, desenvolvidas ao longo de 9 anos (1923-1932), Stieglitz diz: "Quis fotografar as nuvens para descobrir o que me haviam ensinado quarenta anos de fotografia. Através das nuvens, deitar no papel minha filosofia de vida – mostrar que as minhas fotografias não se deviam ao conteúdo e aos sujeitos – a árvores singulares, a rostos, a interiores, nem a dons particulares – as nuvens estão ali para todos – não se cobra taxas sobre elas até o presente – são livres."
(2)

Nessa série, de grande beleza plástica, a composição se dá como puro efeito do corte do tecido contínuo do espaço celeste. Entre o espaço delimitado, finito, da fotografia e o infinito do céu, o gesto do corte se afirma com radicalidade: sem linhas do horizonte, são espaços indeterminados, flutuantes, em relação ao sujeito. Assim, ao contrário de mascarar o corte, como na démarche pictorialista, Stieglitz afirma que se a fotografia reproduz o mundo, ela só o faz por fragmentos.

Na utilização de fotografias de nuvem por Eduardo Coimbra, atualizam-se essas injunções do dispositivo fotográfico. Em Istmo, por exemplo, o gesto de enquadramento, como toda a construção espacial fotográfica, remete à presença da "janela", paradigma da representação perspectiva. As janelas reais que lhe são acopladas indicam uma orientação para uma imagem sem linha de horizonte, que é, portanto, puro corte. Já nos Horizontes, 1999/2000 e 2001, o próprio título reinscreve uma orientação na imagem e assim supre a ausência de qualquer eixo de referência interior: a orientação é dada pela sua inscrição no mundo.

As imagens arrancadas do tecido contínuo da extensão do céu, que por essência não é composto, postulam a ausência de composição e curto-circuitam as relações internas entre os elementos. Imagem da realidade mas que nos priva do elemento primordial de nossa relação com esta pela supressão de qualquer referência ao solo, à terra, ao horizonte. Ao mesmo tempo, sua forma de apresentação estabelece uma relação virtual com o mundo. Se o horizonte, por definição, jamais pode ser atingido, a fotografia, em geral, captura esse elemento fugidio, marcando a suspensão do tempo na paisagem
(3). Em Horizontes para Vera é na virtualidade do encontro do céu e da terra que se subsume um horizonte. À falta de um horizonte sensível na imagem, instaura-se um horizonte semântico e, em vez de atualizar as potencialidades de um lugar, funda seu próprio território: conjuga o instantâneo congelado e o efêmero da contingência, incorporando a passagem do tempo, bem como o fora-do-tempo que o ato fotográfico instala. Cria istmos – ligação, comunicação –, entre temporalidades distintas, para parafrasear o título de sua instalação, com janela e três malas com movimentos respiratórios, apresentada, em 1992, no Espaço Cultural Sérgio Porto (Istmo).

Corte e infinito, enquanto dispositivos operantes no trabalho de Edu Coimbra ficam manifestos em Luz Natural, e outros trabalhos da mesma série. São imagens fragmentadas do que, como evidenciam as Equivalências, por si só já são fragmentos. Remetem ainda ao céu, e também de outras maneiras, ao infinito. Duas operações são postas em jogo: o alinhamento das lâmpadas fluorescentes introduz uma série, um elemento depois do outro, e não deixam de dialogar com a não-composição e o pré-determinado minimalista. Em oposição a esses preceitos, porém, toda uma simulação é introduzida: a distância entre as lâmpadas é regida pelas sombras dando a fugaz ilusão de um todo. Tudo está à mostra: os fios, os conectores, os reatores das lâmpadas.

Entre o modelo fotográfico e a apresentação formal, se estabelece uma relação contraditória: a repetição cadenciada das lâmpadas recobertas de fragmentos de uma fotografia dá uma aparência de regularidade a qual é, no entanto, resultado de uma espécie de objetificação da fotografia. E a sua aparência de unidade é produto da manipulação da imagem. Acentuada pela back-light, a imaterialidade, remete a estruturas de outro espaço da representação, ou de um efeito ilusionista no interior da ilusão. Submetida a um corte serial, a imagem do céu, cria a ilusão de uma unidade construída por fragmentos do fragmento; e a serialidade, por sua vez, indica a possibilidade de reconstruirmos mentalmente o contínuo infinito do céu.

Em suas maquetes, fatias de céus envolvem espécies de praças, possíveis lugares públicos onde seres diminutos passeiam, jogam, quem sabe amam, e assim, por meio da relação entre nuvens e paisagens, reestabelecem a relação entre céu e terra sobrepondo situações de transição entre espaços internos e externos, entre natureza e artifício, escultura e fotografia, e cadeias de imagens de elementos heterogêneos. Referindo-se à instalação Fatias de Memória, 1995, Ricardo Basbaum assinala que "é através da associação de cadeias de imagens e objetos que Eduardo Coimbra aponta a importância do que constitui a 'circulação de energia' de uma instalação, tornando claro o aspecto de fluxo que aproxima matéria, vida e pensamento".
(4)

Passos silenciosos de pernas de cachorro empalhadas: Vanitas contemporâneas? Mas Vanitas que não nos alertam sobre a finitude, embora o devir se faça presente. Como o crânio e outros atributos, tão recorrentes nas Vanitas clássicas, pernas empalhadas invocam um além da existência. E evocam a relação cultura e natureza, o espaço entre o natural e o artificial. Tudo é concreto em sua materialidade e funcionalidade, ao mesmo tempo, parecem pertencer à esfera da virtualidade (Passos Silenciosos, 1994). Em Animal/Beuys (5), de 1993, feltro, madeira, espuma e motor elétrico compõem igualmente uma cena/ação. Menos que metáfora ritual de uma conciliação do homem e da natureza, o trabalho se apresenta como uma tentativa de associar ideias, emoções, imagens, citações da história da arte. Oposições e correlações. Do animal representado podemos inferir várias alusões sem, no entanto, que este desencadeie o suposto "bom pensar" que as espécies têm o poder. Estamos mais próximos de algo dessacralizado: o feltro, conservador de calor, não mais evoca ou simboliza a proteção, ou o "laço mágico entre natureza e cultura, nascimento e morte, animalidade e humanidade"(6): é parte da cena de uma citação explícita a Beuys. O que poderia ter de mais fundamental no ser vivo, sua respiração, é aqui função de um gadget mecânico.

Com variadas significações, Passos Silenciosos ou Sem Título, de 1997, convocam a natureza morta, no seu dispositivo de montagem, de operação cinemática, mas esvaziam a noção de espiritualidade. À diversidade de elementos presentes alia-se uma ampla simbologia que ativa o fluxo de suas significações, e que não deixa de remeter, de múltiplas maneiras, a uma relação entre o céu e a terra, entre natureza e artifício. Em Passos Silenciosos, passos e pegadas, que evocam a terra com a qual estabelecem contato, se unem à imagem de nuvens, em caixa de luz. Em Sem título, 1997, o ovo, enquanto realidade primordial que contém em germe a multiplicidade dos seres e está simbolicamente ligada à gênese do mundo e à sua renovação periódica, vem confrontado ao material produzido por síntese artificial. Há como uma declinação da relação entre natureza e artifício nos diferentes trabalhos.

A natureza é tema e material. Não natureza considerada em sua fatalidade ou lugar do trabalho, mas como fragmento, recorte. De corpos e do contínuo celeste, no caso das nuvens. Corte. Dispositivo fotográfico. Trata-se de fragmentos. E, se não deixam de remeter ao gênero romântico por excelência, nos Passos Silenciosos há como uma desmaterialização do animal. E, se aspiram a uma totalidade, esta é rizomática, sem centro, transitiva. A realidade é construída, artificial, fabricada. As pernas de animais aludem a uma espécie de corte espacial e temporal. Apresentam-se como imagens e, nesse sentido, guardam as mesmas estratégias presentes nas fotomontagens, denominadas Asteroides 
(7), natureza construída. A imobilidade do animal empalhado, fixo em sua pose construída pelo taxidermista, e suspenso da passagem do tempo, acentua a operação "fotográfica" que parece permear toda a poética de Eduardo Coimbra. Ou, como diz o artista Olivier Richon, "O animal empalhado é como uma fotografia em três dimensões".(8)

Do dualismo natureza-cultura à sua reconciliação simbólica, a presença de animais na arte contemporânea, não mais no registro da representação, indica, entre outras coisas, que a relação com o material se dá em uma outra ordem no que diz respeito ao conceito de forma. Ou ainda: não se trata de formalizar o material, a carga semântica destes se faz presente no funcionamento da obra. Assim, nas mais diversas práticas artísticas contemporâneas, tem se feito presente o animal real: formigas, cupim, papagaios, araras, cavalos, vacas, tubarões, porcos, galinhas, cachorros – seria imensa a lista –, sem falar nas baratas e formigas de Lygia Pape, ou nas moscas de Duchamp, em Torture-morte, 1959.

Em Animal/Beuys, a representação de um animal como simulacro e a explícita referência ao artista alemão, indica sobretudo a impossibilidade de uma espiritualidade redentora ou da suposição de que das energias físicas e espirituais dos animais, analogias comportamentais possam ser inferidas para a vida de todas as criaturas. Com sua cobertura de feltro cinza, lá está o animal, mas suas conotações históricas e estéticas o fazem algo além dele mesmo – o que é a definição própria à alegoria. Entre a representação do animal, construída com madeira, espuma e motor, e o animal empalhado não estaríamos então no campo da alegoria? Se em seu uso clássico, a alegoria propõe um sentido oculto e exige exercícios de interpretação, a sua referência na arte contemporânea indica a mistura de conceitos e sensações, citações e fragmento. Opera por signos.

Entre o animal empalhado e o sopro no inorgânico, no caso das malas, ocorre uma espécie de reversibilidade entre o natural e o artifício, sem hierarquias. As malas se inscrevem na linhagem das máquinas celibatárias
(9), inverossímeis, que apresentam o homem e a inter-relação dos sexos sob a forma de uma simples mecânica, como as de Raymond Russel, Duchamp, Picabia, Man Ray, Max Ernest, Haussman, Giacometti, e muitos outros. Sem falar no célebre encontro entre uma máquina de costura e um guarda-chuva em uma mesa de dissecação... Ao contrário das máquinas reais e mesmo das máquinas imaginárias, mas racionais como as de Jules Verne, por exemplo, a máquina celibatária se apresenta antes de tudo como uma máquina impossível, inútil, incompreensível, delirante. Não governada pelas leis físicas da mecânica ou das leis sociais da utilidade, mas guiada essencialmente pelas leis mentais da subjetividade, a máquina celibatária é, segundo Michel Carrouges, "um simulacro de máquina, como as que aparecem nos sonhos, nos teatros, no cinema ou ainda nas áreas de adestramento de cosmonautas."(10)

A introdução, em seus trabalhos, de motores, circuitos elétricos e luminosos ocorre, segundo Eduardo Coimbra, na sua passagem de engenheiro a artista – por exemplo, em Fonte e Espelho ambos de 1991. Também nas malas que respiram, há a passagem da esfera do instrumental a uma atividade mais próxima ao bricoleur. Como assinala Lévi-Strauss (11), o engenheiro opera por meio de conceitos e o bricoleur, por signos. Enquanto o conceito se quer integralmente transparente à realidade, o signo aceita e exige que "uma certa humanidade seja incorporada a essa realidade". Com a retórica própria às máquinas e as sensações produzidas pelas vibrações e abismos dos sinais energéticos e luminosos, as "máquinas" de Edu Coimbra colocam em questão a apreensão do tempo e espaço, e criam uma dimensão cenográfica. Segundo Ligia Canongia, "o mundo de Eduardo Coimbra é uma espécie de 'engenharia do sonho'".(12)
Enquanto signos, superposição de elementos heterogêneos sobre um plano comum, os objetos apropriados do cotidiano dão margem às mais diversas alusões simbólicas. Assim, as "delirantes" malas que respiram, espécie de "objeto a funcionamento simbólico" dos surrealistas, desencadeia mecanismos associativos, interconexões e contaminações de diversas ordens. Essa interface entre o natural e o artificial, e a polissemia de sentidos que gera, se faz igualmente presente nos trabalhos mais recentes, em que céu e Terra buscam um horizonte comum, embora artificial, imagético.

Em Invenção da Paisagem, 1998, há uma operação próxima a Magritte, com sua ambigüidade entre uma imagem da realidade (o quadro) e uma imagem da imagem da realidade (o quadro no quadro). Transitando, igualmente, entre a realidade e a imagem da realidade, os trabalhos de Eduardo Coimbra, instauram uma ambigüidade entre natureza e cultura, e simulam esses estados de conjunção ou fusão do céu e da terra. Seus Horizontes, construídos em grande escala ou em maquete, incitam (mesmo que pela imaginação) a vivenciar a mobilidade que é própria ao horizonte, pois as imagens de nuvens, intrinsecamente sem horizonte, adquirem uma realidade "geográfica", um território. Estabelece-se, assim, um jogo entre o que indica uma extensão indefinida e o encontro, simulado, entre o céu e a terra.

Na maquete e em sua virtual realização no espaço externo há um deslocamento da problemática do site specific. Eduardo Coimbra parece buscar a delimitação de territórios mais do que estabelecer uma relação com um ambiente e suas condições físicas e histórico-culturais. Se sítio é o lugar que o objeto ocupa, em sua mais larga acepção, território implica traçar limites. Seus trabalhos, de fato, traçam limites e neles instauram ambientes/sites: o espaço é ocupado e objetos atuam em uma cenografia onde narrativas de diversas ordens constroem possibilidades significativas. Invenção da Paisagem, por exemplo, opera no interstício entre imagem e realidade, ou seja, opera no site specific para nos deslocar do site para a sua imagem. Em Horizontes para Vera, subir as rampas propicia um olhar para o contínuo do céu, ao mesmo tempo em que este está capturado qual "equivalente" na estrutura da própria rampa. O trabalho se perfaz na relação entre o deslocamento que as situações supõem e os recortes espacial e temporal da fotografia. Nesse território criado, e tornado ambiente, as figurinhas não deixam de remeter a situações escultóricas, mas aqui também como simulacro e menos representação, como mise en scène, fulguração de vida. Indicam a possibilidade de se fazer a experiência da obra e a experiência de si mesmo como ser temporal físico.

A paisagem como lugar e material das obras, ocasionou um deslocamento dos limites do circuito de difusão, de comercialização e de institucionalização, instaurando uma nova relação entre o mundo real e o mundo da arte. Em grande parte dos trabalhos da Land Art está em jogo a totalidade da paisagem (e portanto o deslocamento incessante do horizonte), e a possibilidade da experiência englobar tanto o trabalho quanto a paisagem. Investir no espaço "real", implicava a desconstrução da unificação racional do tempo e do espaço, e a percepção do espaço sem um ponto de vista único para o sujeito. Se a linha do horizonte, na representação clássica, definia espaços fixos e imutáveis, e se o investimento na paisagem, nos anos 70, pressupunha uma apreensão do horizonte enquanto deslocamento contínuo, os trabalhos de Edu Coimbra oferecem algo da ordem do simulacro. Se o horizonte indica tanto os limites quanto a possibilidade de seu deslocamento, nas rampas projetadas por Eduardo Coimbra, o horizonte natural muda de lugar à proporção que o percurso se inicia, ao mesmo tempo em que um outro horizonte, artificial, é simulado. Modelos híbridos de percepção e interpretação do mundo, mas também de uma possibilidade de convivência, de restituição da presença da vida em outras condições.

A problemática suscitada pela poética de Eduardo Coimbra, não guarda obrigatoriamente um nexo histórico com essas experiências na paisagem, mas superpõe referências teóricas e históricas heterogêneas. Não há ilusões de uma possível reorganização ou de reencontro com o ambiente natural, com o deserto por exemplo, e suas simbologias. Se há na Land Art uma certa tendência à eliminação do conteúdo icônico do trabalho, com o quase eclipse da obra para acentuar sua relação indicial e simbólica com o site, em seus trabalhos a presença da imagem é decisiva. Opera no continuum espaço-temporal da sociedade mediática, na qual tanto nossa visão quanto a lógica das formas são afetadas. As imagens de nuvens funcionam como elemento estrutural nos trabalhos de Edu Coimbra, não são resíduos ou documentação.

Artificial, definido, o horizonte não se desloca, mas exige o deslocamento. Na aviação, o horizonte artificial é um instrumento para materializar uma referência de vertical terrestre, aqui ele cria um território para uma possível mirada do horizonte. Nesse duplo movimento, é o dispositivo fotográfico, inerente à estratégia dos trabalhos, que se explicita, pois se o corte isola uma porção de um campo infinitamente maior, não cessa de convocar a presença implícita do resto do mundo.

Ao sobrepor recortes formais particulares ao corte espacial implícito do ato fotográfico e ao inscrever a duração na relação direta com a obra, esses trabalhos estabelecem uma relação, paradoxal, entre o real e a representação fotográfica, que é da ordem da recriação do real: como paisagem construída. Embora a relação indicial da fotografia se faça imediata pela referência ao céu, ligando imagem e mundo, o "isto foi" próprio à fotografia, como diz Roland Barthes, evidencia a conjunção de temporalidades diversas: a de um momento pretérito qualquer do contínuo incessante da passagem das nuvens e da sua situação no mundo.

Invenção da Paisagem, em particular, reinstala a problemática da paisagem ao superpor o natural e o cultural, e na representação da paisagem in situ, sinaliza que, no final das contas, a paisagem é apenas aquilo que se vê, e a partir de um ponto de vista... As imagens em back-lights acentuam esse enquadramento perceptivo, ao mimetizar a moldura imposta pela arquitetura do museu que torna a paisagem um objeto estético. A terra que a envolve, cria, no entanto, um outro enquadramento perceptivo: uma paisagem "natural" no interior do museu. Acoplando temporalidades diferentes, a terra remete ao fato de que a paisagem não é só um puro objeto em face ao qual o sujeito poderia se situar em uma relação de exterioridade.
(13) Nesse espaço transicional, entre representação e elemento natural, a paisagem, enquanto interface entre espaço objetivo e subjetivo, se evidencia. Não se pode falar da paisagem a não ser a partir da percepção – do seu aspecto visível, perceptivo do espaço –, sem, contudo, que esta se limite passivamente aos dados sensoriais. Transgredindo do campo natural ao campo social, realidade ecológica e produto social, como diz o geógrafo Georges Bertrand, "a mais simples e a mais banal das paisagens é ao mesmo tempo social e natural, subjetiva e objetiva, espacial e temporal, produção material e cultural, real e simbólica, etc."(14) Enquanto interpretação social da natureza, a paisagem é um processo, produto do tempo e mais precisamente da história social. Se a representação da paisagem, sua instauração enquanto gênero pictórico, no século XVI, diz respeito à capacidade do sujeito moderno de objetivar a realidade do mundo, hoje, assistimos à transformação da paisagem em ambientes, realizados materialmente a partir da representação. Ou seja, a imagem adquire aspectos de realidade geográfica, e nesta, como em um décor de uma peça, a própria realidade é mise en scène.(15) "Inventa-se" a paisagem, tornando-se por vez difícil diferenciar entre o natural e o fabricado.

Invenção da Paisagem questiona a natureza da nossa relação com o mundo e os códigos usados para capturar o mundo na forma de representação
(16). Ao instaurar a ambivalência entre a realidade e a aparência da realidade, o trabalho dialoga com a ambigüidade intrínseca à palavra "paisagem", que designa ao mesmo tempo as coisas do ambiente e a sua representação. Presente em grande parte da produção dos anos 60/70, a "precipitação para a paisagem" ou sob outras modalidades, a inscrição no espaço real introduziu um agenciamento da localização (do site specific), enquanto modalidade expressiva. Situação, na qual somos confrontados ao que é arte e ao que não o é, e que cria uma "realidade" composta por todos os elementos.(17) Essa desvalorização do objeto de arte auto-referencial traz consigo uma interrogação sobre o uso da fotografia dessas obras como objeto reintroduzido no circuito e, por isso mesmo, sujeito às críticas mais diversas (em geral ligeiras). A documentação fotográfica, ocupa, no entanto, um lugar de instrumento de interrogação do real e de questionamento da concepção do espaço baseado na grade perspectiva. Diante da impossibilidade de dar conta da multiplicidade de pontos de vista própria à percepção, a fotografia foi, assim, objeto de investigação enquanto dispositivo operatório. Michael Heizer, por exemplo, que definiu desde cedo a concepção do trabalho de arte como "lugar" apresenta, em termos fotográficos, o Double Negative como uma sucessão de instantes.

No trabalho de Eduardo Coimbra, está presente um diálogo com essas experiências, no entanto, algo nos lança em outro patamar de percepção e de interrogação do real, e a partir de um outro ponto de vista. A imbricação foto-paisagem torna esses termos "equivalentes". Não como a apresentação mais direta da própria fotografia enquanto potência irredutível do corte espacial, como em Stieglitz, mas como uma realidade que não mais carrega consigo uma ambição de abarcar o real. Sobrepõem-se o real e sua representação, a realidade natural e a cultural.

A tensão entre a função indicial do signo fotográfico e sua presença icônica, particularmente presente em certos trabalhos como Invenção da Paisagem, transforma a paisagem em imagem, e a imagem em paisagem. A relação paisagem/fotografia, nos trabalhos de Edu Coimbra, parece atualizar a afirmação de Robert Smithson: "A fotografia tornou a natureza obsoleta".
(18) Ao associar temporalidades e espacialidades distintas – as da representação e as do "território" criado –, esvazia-se uma possível identidade entre signo e referente e, assim, a analogia da imagem fotográfica. Ao mesmo tempo, a presença do dispositivo fotográfico na sua relação com a paisagem, indica a ascendência desse modelo: seja enquanto emanação do real, sem o qual não pode existir; seja enquanto questionamento do real, não passível de ser convocado em sua totalidade. Trata-se de um real permeado pela imagem e pela descontinuidade que lhe é intrínseca. Na série dos Asteroides, a multiplicação de pontos de vista que constrói a nova paisagem, ataca o paradigma perspectivo que rege o modelo fotográfico e a possibilidade de um ponto de vista privilegiado destinado ao espectador; revela, igualmente, uma outra dimensão temporal minando assim a temporalidade que seria própria à fragmentação fotográfica, isto é, o instante, como salto possível para fora do tempo. Enfatiza, por fim, o tempo como elemento irredutível de separação, de corte, entre o signo fotográfico e sua referência. Seu trabalho situa-se assim num campo onde a fotografia e o seu modelo operante, contribuem fortemente para o deslocamento do significado artístico auto-suficiente e suas exigências de uma esfera de "competências" próprias; mas também onde este modelo, como instrumento para interrogar o real e sua representação, desvelou um real como questão e não mais um dado a priori. Sua démarche parece, assim, convocar as múltiplas relações que a imagem fotográfica, enquanto dispositivo, estabelece com o real: de cópia, contigüidade, símbolo e parte do nosso real de hoje. E ao se utilizar das caixas de luz, (o uso da luz é extremamente presente e diversificado em quase toda a sua produção), criam-se campos luminosos que interferem na experiência do espaço, fundindo a imagem e o ambiente em um todo perceptivo.

"É o ar que torna o céu azul" dizia Leonardo da Vinci. É neste azul do imediatamente visível que se situam as fotografias do céu apresentadas por Eduardo Coimbra. Em suas maquetes, em particular projetos para espaços públicos, onde se fazem presentes as fotografias de nuvens, distintos agenciamentos são introduzidos problematizando a relação com o espaço-tempo real. Assim, se o instantâneo do corte temporal do ato fotográfico instaura igualmente a perpetuação – uma temporalidade congelada –, distinta da duração na qual estamos inscritos, a disposição das fotos implica o percurso, e portanto a duração. Essa fenda instransponível, dada pela décalage temporal própria ao dispositivo fotográfico (a qual faz com que esses universos não adiram um ao outro), nesses trabalhos, se juntam à proposição de uma experiência no tempo real. No Mac de Niterói, por exemplo, a terra está ali, passível de germinar ervas, enquanto as imagens congeladas indicam um fora-do-tempo e do espaço. São espaços capturados, extrações de um contínuo infinito tanto quanto é a paisagem com seu ponto de vista. Mas o espaço fotográfico também convoca o fora-do-campo, aquilo que não é visível. Essa presença virtual do resto do mundo, do que é explicitamente deixado de lado, só vem reafirmar o espaço do museu, e de certa maneira a própria condição da paisagem na sua interação com a arquitetura. No jogo com os espaços do museu, há como um deslocamento dos planos arquitetônicos e de sua inserção na paisagem: as imagens reduplicam o real, refazendo com precisão os ângulos de visão da paisagem, reproduzindo virtualmente o que é oferecido no andar de baixo do museu. Essa relação entre o que está dentro e o que está fora no espaço fotográfico, presença virtual que a lógica do índice instaura, se transmuta entre o dentro e o fora do museu. Segundo o artista, "o trabalho propõe a criação de uma paisagem. A arquitetura do museu, tanto externamente (com seu caráter escultural) como internamente (como espaço para a contemplação), dialoga o tempo todo com a paisagem. Interior e exterior são orientações que estabelecem os limites de nossa vivência do espaço. A expansão e interação desses limites são questões deste trabalho".(19)

De diferentes modos, um jogo narrativo permeia os trabalhos, o que não deixa de evocar uma certa dimensão cinematográfica pelo fluxo e ritmo. As figurinhas nas maquetes, em Horizontes, por exemplo, são quase personagens de um universo ficcional. Mas também em Túnel, 2000, Bacias, 1991 ou na instalação Fatias de Memória, 1995. Essa "ficção" está particularmente presente em Istmo que conjuga de um lado motores, que geram os movimentos respiratórios das malas, e de outro, a ação do aparelho fotográfico, na fotografia de nuvens. O sopro, universalmente ligado ao princípio de vida, não deixa de remeter a legendária tentativa de insuflar vida na arte. Revisitam, sem dúvida, os Bichos de Lygia Clark, definidos pela artista como "um organismo vivo". Mas o sopro não transforma esses "bichos virtuais" em "uma entidade orgânica que se revela totalmente dentro de seu tempo interior de expressão.(20) A referência antropomórfica, orgânica, é contrarrestada pela desnaturalização e pelo artifício: é subvertida a ideia do orgânico, sem deixar, no entanto, de evocar seu universo simbólico. No taoísmo, por exemplo, ele simboliza o espaço intermediário entre o céu e a terra. Resultado da polarização primeira e do rompimento desse laço primitivo, esse "entre" é o espaço de inserção do homem no mundo. Nessa junção da natureza híbrida das malas e a imagem de nuvem, cuja natureza é tida como confusa e mal definida, paira, assim, a evocação, hiperbólica e surreal, de uma possível restauração desse laço.

Ainda em Istmo, no uso dos motores, a esfera instrumental é desativada para dar destino inesperado às coisas inanimadas. A relação entre o natural e o artificial ganha um outro viés pela janela que permitiria ver o céu, mas que se abre como moldura à sua imagem. Ao motor se conjuga a fotografia, a qual, segundo Vilém Flusser, "transforma conceitos em cenas".
(21) E no jogo ilusionista, ela se apresenta tanto como uma possível visão natural de uma janela, quanto, ao incorporar janelas, uma 'representação' da própria representação. E nessa "cena", os espaços interno e externo, perdem suas demarcações. Cria-se, assim, um contexto ambíguo, em que associações e encontros de diversas ordens parecem buscar meios de reencontrar a essência misteriosa das coisas; uma atmosfera magrittiana, aberta a múltiplas articulações do inconsciente, e a diferentes níveis de significação. Em Paisagem-erupção, de 1997, a presença da terra torna ainda mais explícita essa atmosfera. Já em Passos Silenciosos, 1994, o sentido de realidade expresso pelo ditado "ter os pés sobre a terra" é invertido: são "passos" de nuvens, em meio a um território criado pelo sal grosso.

Convocando várias regiões do saber e criando "arquiteturas do acaso", (parafraseando a definição de Borges para as nuvens) a produção de Edu Coimbra guarda o caráter de situações transitivas em que contaminações de diversas ordens criam territórios onde natureza e cultura possam tornar presentes outros horizontes. A articulação imagética entre o céu e a Terra recria a paisagem, não só para ser olhada, mas como possibilidade de inserção do homem no mundo. Como toda paisagem, também está sujeita ao processo histórico. E, de fato, sua obra vem se constituindo inseparável de sua ação em circuitos de intervenção e agenciamento de produções artísticas, com uma dimensão política da praxis artística. Ação e reflexão, nas quais parecem ecoar as palavras de Baudelaire: "Ah as nuvens, eu amo as nuvens".

2002

obs: texto incluído no livro Eduardo Coimbra, editora Casa da Palavra, 2004

notas:
1  Philippe Dubois, O ato fotográfico, Campinas, Papirus, 1994.
2  Alfred Stieglitz, apud Philippe Dubois, op. Cit.
3  Ver Gilles Tiberghien, "Horizons", in: G. Tiberghien, Nature, Art, Paysage, Paris, Actes Sud/ENSP/Centre du Paysage, 2001.
4  Ricardo Basbaum, "Formas do tempo", Revistausp, n.40, dez. jan. fev. 1998-1999, pp. 46-57.
5  Animal/Beuys participou da exposição Um olhar sobre Joseph Beuys, Museu de Arte de Brasília, 1993. O formato do animal foi retirado de um desenho de Beuys.
6  Segundo Bernard Lamarche-Vadel, "No material de Beuys, o feltro é então dotado do poder de conservar e proteger, mas também de ser o laço mágico entre natureza e cultura, nascimento e morte, animalidade e humanidade, e assim adquirir um caráter propriamente totêmico no dispositivo do escultor" in: Is it about a bicycle, Paris, Marval/Paris, Galerie Beaubourg, Verone/Sarenco-Strazzer, 1985.
7  Esta série é composta por seis impressões fotográficas de fotomontagens. Cada um dos seis asteróides é fruto do registro fotográfico de uma determinada paisagem, realizado num determinado dia. (N. E.)
8  Olivier Richon, "L`animal comme alégorie de la représentation", Recherches Poîétiques, Revue de la Société Internationale de Poïétique n.9, primavera 1999/2000 (Dossier "L`animal vivant dans l`art contemporain").
9  A parte inferior do Grande Vidro é denominada, por Duchamp, de "a máquina celibatária". Segundo Harald Szeemann, variadas máquinas proliferaram entre 1850 e 1925. (Podemos inferir que justamente no período de industrialização mais intensa correspondem essas máquinas construídas como bricolage). H. Szeemann, "Le machine celibi", in: cat. Le machine celibi, Milão, Electa, 1989.
10  Michel Carrouges, "Instruzioni per l`uso", in: ibid.
11  Claude Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Paris, Plon, 1962.
12  Ligia Canongia, "Escultura Plural", in. Cat. Escultura Plural, Salvador, Museu de arte Moderna da Bahia, 1996/ Rio de Janeiro, Museu de Arte moderna do Rio de Janeiro, 1997.
13  Como assinala Michel Collot, a paisagem "se revela em uma experiência onde sujeito e objeto são inseparáveis, não somente porque o objeto espacial é constituído pelo sujeito, mas também porque o sujeito por sua vez se encontra aí englobado pelo espaço". In: "Points de vue sur la perception des paysages", in: La théorie du paysage em France (1974-1994), Seysse, Champ Vallon, 1995.
14  Georges Bertrand, "Le paysage entre la Nature et la Société", in: ibid
15  Ver Augustin Berque, Les raisons du paysage. De la Chine antique aux environnements de synthèse, Paris, Hazan, 1995.
16  Um diálogo interessante desses mecanismos operatórios de Eduardo Coimbra pode ser estabelecido com o Projeto para construção de um céu, no qual Carmela Gross interroga as tradições das representações do céu. Opondo os registros da visão e os códigos de construção visual, disseca a construção conceitual do desenho, e evidencia a contradição entre sistema de coordenadas como base da interpretação do mundo e a apreensão sensível. "É, diz Ana Maria Beluzzo, um `fingimento` sobre a equivalência dos termos resultantes da visão e da convenção construtiva". Ana Maria Belluzo, Carmela Gross. São Paulo: Cosac&Naify, 2000.
17  Ver Gilles A. Tiberghien, Land Art, Paris, Carré, 1993.
18  Robert Smithson, "A Tour of the Monuments of Passaic", New Jersey, in: Nancy Holt, The Writings of Robert Smithson, New York, New York University Press, 1979.
19  Eduardo Coimbra, "Invenção da Paisagem", in: cat. O artista pesquisador, Niterói, Museu de Arte Contemporânea, 1998.
20  Lygia Clark, "Bichos", in: cat. Lygia Clark, Rio de Janeiro, Paço Imperial, 1999.
21  Vilém Flusser, Filosofia da Caixa Preta, São Paulo, Hucitec, 1985.



voltar - preparar para impressão