Analítica do olhar
Raul Motta

Para além da conformação às categorias objeto, desenho, escultura ou instalação, os trabalhos de Eduardo Coimbra podem ser experenciados como "aparelhos" que, reiterada e insistentemente, nos obrigam a um confronto com esse eterno duplo da representação: o conceito de realidade. A natureza desse embate, sua qualidade intrínseca, é a de provocar um exame crítico-reflexivo dos mecanismos mentais subjacentes à operação perceptiva. Como estratégia, Coimbra opta pelo estranhamento na recepção e apreensão de imagens que se nos impõem aos olhos pelo caráter prévio de sua verdade, ao mesmo tempo em que nos envolvem em um jogo sutil marcado pela ironia. A manipulação explícita de imagens "reais" não visa a fins ilusionistas, e o jogo irônico é posto a serviço de uma desnaturalização do olho, induzindo a uma desconfiança relativamente a seu pathos eminentemente orgânico.

A potência das imagens se apoia nesse impasse ótico, sem reduzi-lo à pura oticidade. A concretude manifesta dos trabalhos, a visibilidade desavergonhada de seus procedimentos técnicos de construção absolutamente explícitos – os fios aparentes em Luz Natural, o puzzle que conforma Imagem Aérea –, promovem situações nas quais o sujeito-espectador se vê entre a sedução e o desconforto: convidado a fruir uma amplitude que muitas vezes o remete a uma certa ideia de infinito, é inapelavelmente conduzido de volta a si mesmo. A esse efeito de espelhamento soma-se a desconstrução das referências espaciais – tematizada em Horizontes, auto-referente no diálogo obra-título em Imagem Aérea – recursos de linguagem postos a serviço de uma poética que, sem alusões a qualquer psicologia, fundamenta-se numa rigorosa analítica do olhar.

Convidado a exercitar um olhar enviesado, o espectador é confrontado com a perda da inocência relativa a uma possível transparência e transcendência das imagens. Diante do objeto – diante do mundo – as referências capazes de configurar seus horizontes perceptivos possuem a espessura das superfícies e a densidade de constructos mentais. Antes solar, o sujeito é levado a assumir o luto de sua condição contemporânea ao se ver frente a objetos que emitem sua própria luz – ainda que sustentem uma persistente e contraditória opacidade.

"Aparelhos" especiais, as obras de arte não apenas sinalizam ou amplificam as possibilidades humanas, como principalmente as desdobram. Ao criticar a fé perceptiva apoiando-se na experiência sensível, a obra de Eduardo Coimbra possibilita ao sujeito-fruidor vivenciar ele mesmo essa radical contradição – e o liberta para sustentar a convivência, o cruzamento e a superposição de horizontes.

2002

obs: texto escrito para impresso da exposição Luz Natural, realizada na Galeria Cândido Portinari, UERJ, Rio de Janeiro, em janeiro de 2002



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