Topologia da paisagem infinita
Guilherme Bueno

"Os homini sublime dedit coelumque
tueri [o criador] deu ao homem um rosto voltado
ao céu para que ele o possa olhar face a face."

OVIDIO

"...Vers le ciel quelquefois, comme l`homme d`Ovide,
Vers le ciel ironoique et cruellement bleu,
Sur son cou convulsif tendant as tête avide,
Comme s`il adressait des reproches à Dieu!"

BAUDELAIRE

`"Céu, tão grande é o céu.
E bandos de nuvens que passam ligeiras."

TOM JOBIM, ALOYSIO DE OLIVEIRA, RAY GILBERT

 

Nuvem, projeto de Eduardo Coimbra destinado a ocupar a Praça XV, no Centro da cidade do Rio de Janeiro, inscreve-se em uma discussão que permeia boa parte da obra do artista, seja em intervenções diretas no espaço urbano, seja naquelas outras efetivadas pelo pensamento por meio do encontro com suas maquetes ou objetos e instalações e que, inclusive, batiza um trabalho seu de 1998: a invenção da paisagem.

A proposta para a Praça XV consiste na disposição em série de backlights quase o triplo da altura de um cidadão médio, no qual é impressa em cada uma das caixas a imagem de uma nuvem, um pequeno céu na terra, que apela à imaginação e não à evasão. Sua potência evidencia-se em trazer o que está longe para perto, incorporando-o ao nosso entorno acidentado. O transeunte passa entre elas no seu percurso diário. Do alto do viaduto – engarrafado ou não – vê-se o céu ali abaixo... Trata-se de deslocar a paisagem de sua suposta naturalidade, seja pelo seu local ou pela sua consistência (isto é, o aglomerado de injunções conceituais que constituem um modelo de visão por meio de determinados códigos formais), e se relacionar a outra invenção, a do espaço.

Se a torção do espaço já surgira em Paisagem (2000) e Asteroides (1999) como uma espécie de superfície contínua e infinita que amalgamava a esfericidade da Terra de Colombo ao eterno retorno da fita de Moebius, na qual o chão está simultaneamente acima e abaixo, em Paisagem-erupção (1997) e nos Horizontes (2000-2002), há o fenômeno inverso, o céu se torna chão. A questão daí advinda reside na tensão de conferir a uma entidade que no senso comum evoca o vazio o papel de fixar-se como fundação física daqueles mundos. O céu como medida é zero e infinito. Essencial para a definição do espaço, posto que é por meio de sua capacidade de ocupar o entorno entre os corpos que tudo se torna coercível de delimitar o lugar e a configuração das coisas, ele acaba existindo como própria negação, ou seja, o nada que se materializa graças à suposta ausência. E, curiosamente, o único objeto que cremos ser apto a ocupar naturalmente esta vastidão é outro igualmente de mensuração aparentemente insólita, a nuvem. Ainda que dependentes reciprocamente, coexistentes, nuvem e céu, mais do que antitéticos à solidez de nosso espaço bruto, são também opostos entre si: seriam duas modalidades de inaptidão para a forma por excelência (às quais poderíamos atribuir a palavra francesa informe). Tanto nos Horizontes quanto em Paisagem-erupção, contudo, ambos irrompem do chão, saem de suas profundezas – a pressão atmosférica, ao invés de moldar os corpos por fora, o faz de dentro – e mantém o solo firme como se eles – nuvem e céu – fossem seu vigamento ou, no último caso, em suspensão estável, além de suscitarem um reconhecimento enigmático de que o ar não é o céu, apesar de formados pela mesma matéria física, mas dissidentes quanto àquela poética que lhes reveste (o ar é o banal e corriqueiro que nos circunda, o céu a projeção dos desejos mais elevados de ultrapassar nossas contingências mundanas), conforme transparece no confronto direto entre o vazio do espaço que separa o cume da base de uma montanha e no interior deles serem vistas imagens de céus e nuvens. O lapso entre base e cume, este estranho oco-sólido distingue-se categoricamente do vazio-cheio do interior. Em suma, evocam os paradoxos de o vazio demandar para sua visualização a presença de uma imagem (um duplo vazio) para que se torne apreensível e do incomensurável sustentar e ocupar um volume métrico do espaço retido, configurado e dominado por nossas mãos.

Podemos tomar estas premissas para refletir sobre aquilo que acontece na Nuvem da Praça XV. Conforme assinalamos antes, elas não lidam apenas com a invenção do espaço e da paisagem, mas também fazem o inventário de seus modelos. A questão vai desde a capacidade de construir uma objetualidade presencial mensurável para a vastidão e o infinito, tornando-os racionalizáveis (e nisso temos outro dilema fundador), até o seu embate com o mundo. De fato, o elemento decisivo para a existência do céu no espaço visual da pintura era a nuvem. Ela implantava-se como um índice para a significação daquela parcela projetada para além dos planos, distinguindo-os e conferindo a cada um sua posição apropriada. O problema, contudo, ao menos para o espaço renascentista (conforme aponta o filósofo francês Hubert Damisch) reside na "inadequação" formal da nuvem àquela grade geométrica, na medida que sua configuração vacilante não cabe pacificamente na malha cúbica do cenário, mas que, por outro lado, é fundamental para sua mecânica. Se o céu anuncia o infinito, a nuvem é o zero, ou seja, aquele valor objetivo (e curiosamente, profundamente abstrato) capaz de organizar a permutação entre as variáveis de uma equação. De certa maneira, a Nuvem é um marco zero na malha urbana da Praça XV, é nosso parâmetro solidificado de cálculo e travessia daquele território, a assimilação do percurso, da trajetória como matéria, tal como percebida pela arte contemporânea, tanto por Smithson quanto por Acconci.

A Nuvem é, de fato, um composto heterogêneo que se aglutina mediante a presença fugidia do transeunte. Ela existe simultaneamente como seqüência de módulos individualizados e como forma maior na qual os backlights se integram por meio da luz emanada de seu interior, ocupando os vãos existentes entre eles. É o ingresso do espectador neste campo dúplice, que acaba por integrar e cortar aquela entidade por um único e mesmo gesto – atravessá-la –, fazendo-a ser tanto nuvem quanto nuvens. Ela é sempre um objeto relacional, seu significado visual nunca é estanque ou fixo (assim como não são imóveis as nuvens no céu...), mas dependente do elo estabelecido entre as partes envolvidas – a obra, o espectador e a situação urbana que as medeia. Tudo vem a ser questão de ponto de vista; ou de passagem. Pode-se acrescentar ainda: ao cruzar o vazio de ar entre as caixas, ele ativa o cheio da luz irradiada, que habita aqueles intervalos de maneira ironicamente diáfana, quase inconsútil e também decididamente artificial.

Nuvem problematiza também o grau zero do espaço moderno. Superpondo-se ao bird eye view decisivo ao espaço de Malevich, por exemplo, no qual se reinventava pelo distanciamento elevado o esquadrinhamento perceptivo das coisas (e entre elas) a ponto de permitir ao mundo perceber a si mesmo pelo descortinar daquilo dirimido através e para além de sua aparência imediata, o trabalho de Coimbra interessa-se em reflui-lo para aquém. Por um lado, a nuvem ou o céu passam a existir como experiência objetual justamente ao se fazerem imagem. Eles dependem de sua sombra para se oferecerem palpáveis, mas por serem duplos visuais, convidam o corpo e o olho conservando uma distância mínima e aguda: o vacilo do espectador em saber até que ponto eles são táteis, isto é, o enigma entre a proximidade da coisa pela sua parcela objetual e o seu afastamento demarcado pela sua existência apenas enquanto projeção de algo que permanece distante. A questão é, pois, desta situação fazer-se presente não em uma instância puramente especulativa, mental, porém em meio ao percurso deste fog tropical, veraneio, poluído e plástico. O atravessamento físico da imagem traz consigo outra inversão nascida deste processo de transferência de materialidades visuais: se as nuvens se movem soltas no céu, aqui elas são estáticas, quase monumentais, quem se desloca é o espectador e, pode-se acrescentar, é este trânsito que ativa o trabalho, tal como, numa comparação feita pelo artista, o avião as fura no alto.

Aqui temos, então, o outro lado do deslocamento de Coimbra em relação àqueles mundos pré-moderno e moderno. Mesmo retida a visão do alto que decifra o que lhe está abaixo, há o seu rebaixamento, ou melhor, sua imersão na superfície (in)finita, descontínua e acidentada da cidade. Substitui-se o olhar do pássaro – bird eye view – pelo do pedestre. Se o homem de Ovídio, tal como apontava Baudelaire na menção a um dos personagens do poeta latino, voltava-se para o céu para nele conjurar o rosto da divindade, ou o sujeito moderno malevichiano procurava o mundo afastando-se dele – aqui céu e terra se confundem, descobrem-se ao se contaminarem: o céu e as nuvens estão a nossa altura e, quando vistos das pistas elevadas do viaduto, abaixo dela. O infinito cabe numa caixa de luz disposta em pleno Centro da cidade, logo ali ao nosso alcance. Erigida como um monólito, ela desafia nossa percepção histórica e sensível da nuvem como a única coisa que parecia naturalmente não se submeter à gravidade, que escaparia de nosso desejo de tomar e reter tudo que nos cerca.

Por conta da maneira como o trabalho se especifica, ou seja, dado seu caráter escultórico, ele revela ainda a capacidade do artista de vivenciar poeticamente outra tradição daquela espacialidade arredia que conseguia escamotear seu recalque do informe no ardil de uma oscilação entre o tátil e o visual. Dito de outro modo, a manifestação do problema para o espaço pictórico e para o espaço escultórico, ou seja, entre as nuvens de Piero della Francesca, Constable e Magritte e as de Bernini, Warhol e Carmela Gross, para citarmos exemplos de épocas e contextos diferentes (além de nos lembramos, complementarmente do uso do vazio – aquele incomensurável – por Tatlin). Se, conforme apontamos, a foto da nuvem é, dada sua condição imagética, uma partição traumática da coisa que lhe deu origem, a caixa, enquanto escultura, restitui-lhe a constituição volumétrica, mesmo que ironicamente amparada pela sua silhueta minimalista. Tão real quanto as nuvens, tão conceitual quanto suas demais representações ao longo da história da arte, a obra de Coimbra incide sobre uma terceira invenção/inventário: a literalidade enquanto método.

Devemos entender tal propósito, no entanto, não como uma visualidade que, diante da oposição entre o evidente e o aparente, precisa escolher um deles para seguir seu projeto de construção da forma. No seu caso, há tanto a simultaneidade quanto a sobreposição, fazendo com que seu espaço sempre viva uma pulsão semelhante àquela provocada pelo sintomático vigamento da terra pelo céu comentado acima.

Como tal latência ocorre na Praça XV? Precisamente no reverso topológico ocorrido por conta da situação urbana das nuvens ali dispostas. Comparemos o caso com as obras anteriores: se antes o céu e as nuvens se moldavam nas frestas da relva, isto é, se a forma da terra dependia da expansão das forças protuberantes abaixo dela, aqui a solidez da nuvem e do céu se dá pelo fato de ambos, ao invés de emergirem do ventre da terra ou se colocarem longinquamente acima dela, apoiarem-se nela; a terra sustenta o céu, não só o que está contido nas caixas, como igualmente aquele que deu origem ao infinito e nele se prolonga. A nuvem, que antes equacionara o cenário renascentista por sua esquizofrenia morfológica, agora ganha uma silhueta ao habitar o palco heterogêneo e errante do informe da vida contemporânea. O homem de Ovídio olha para o alto ao mirar suas solas de tênis sujas.

2008

obs: texto escrito para o catálogo da obra Nuvem, instalada na Praça XV de Novembro, Rio de Janeiro, em novembro de 2008



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