Entre a paisagem como matéria e a paisagem como imagem
Marcio Doctors

Quando sugeri o nome de Eduardo Coimbra para integrar o Espaço de Instalações do Açude, pensei nele porque é um dos poucos artistas brasileiros para quem a paisagem é uma questão. A relação que a princípio me parecia óbvia – Floresta da Tijuca / Espaço de Instalações igual a artista que trabalha com a ideia de paisagem – foi se mostrando complexa, desestabilizando a evidência dessa certeza e revelando sutilezas e percepções que, imagino, serão importantes tanto para o projeto do Açude quanto para a obra do artista.

O pensamento da paisagem na obra de Eduardo Coimbra, como ele próprio define, "surge da dualidade entre a paisagem como imagem e a paisagem como matéria". Essa duplicidade atribui para alguns de seus trabalhos ressonância magrittiniana: "isso não é um cachimbo". A paisagem para ele é uma visão na qual estamos inseridos no jogo do olhar. É como uma superfície primeira da representação que nos captura, envolve e marca a ordem humana como sendo a ordem da representação, estabelecendo uma irredutibilidade entre matéria e imagem.

Através da obra de Coimbra percebemo-nos prisioneiros de uma impossibilidade de fundação que nos impede de chegar à coisa em si: o real da paisagem é a realidade de sua imagem. É uma partida sem volta, uma viagem em direção a um horizonte de deslocamentos incessantes. Em Istmo, por exemplo, essa viagem é presentificada nas malas que se tornam vivas. São seres palpitantes, que mimetizam pulmões, capazes de respirar através de um mecanismo instalado nelas, cujos couros voltam a adquirir a característica de pele e pêlo. Reunidas em um canto da sala de exposição, elas nostalgicamente apontam para a direção de uma janela que, aberta para dentro, nos mostra uma fotografia de um céu azul, indicativo da profundidade do infinito, reinstaurando a atmosfera do afastamento implícito no ato de olhar. Nesse trabalho somos surpreendidos pela radicalidade de nossa condição solitária na natureza – viajantes errantes que jamais aportaremos no solo firme da paisagem como matéria porque somos inscritos na ordem da paisagem como imagem.

Nossa viagem é movediça, feita de deslocamentos contínuos, que a cada nova parada despistam a nossa falta original de não podermos nos relacionar de forma direta com a ordem da matéria. A paisagem é uma nostalgia de uma condição que almejamos e que, de fato, nunca experimentamos. A aventura humana trata, então, de criar mecanismos que permitam nos misturar com essa realidade material e recompor o sentido de unidade perdida.

Um desses mecanismos são as artes plásticas. Talvez o mais paradoxal e pretensioso porque propõe essa aproximação a partir da articulação da própria matéria do mundo. É aí que o imaginário de Coimbra e de Magritte se tangenciam: os dois apontam para a solidão dessa impossibilidade; não se trata da presença do inconsciente na arte, mas da falta como vazio fundador da ordem humana.

Em Passos Silenciosos, essa falta nos é apresentada de maneira aflitiva pela incompletude do animal que, ao ficar reduzido ao empalhamento de suas patas e do congelamento do seu movimento, o dissociou de qualquer intencionalidade. Um movimento que não visa a nada e nos apresenta de forma crua (na ausência do corpo do animal) o vazio da nossa condição errante.

Para um artista cuja imaginação é um dado fundamental, o desafio que o Espaço de Instalações do Açude apresenta é de como enfrentar a paisagem não mais como ideia / imagem, mas como coisa real. Não tinha me dado conta desse fato antes do início do processo de concepção e criação da sua proposta. Ao perceber, senti-me culpado, como se isso fosse uma cilada que o obrigaria a criar uma torção na lógica interna de sua obra. Como ele enfrentaria esse desafio? No fundo, é mais simples para um artista para quem a paisagem não é uma questão colocar um trabalho na Floresta da Tijuca – a contemporaneidade, inclusive, é afeita a essa atitude porque é permeável aos jogos de superposição.

No entanto, a questão se torna mais complexa para um artista que, na maioria das vezes, resolve abordar a paisagem como imagem e não como inserção direta no espaço mesmo da natureza. E o que se pede no Museu do Açude é a inserção da obra no espaço externo. E foi precisamente a proposta de Eduardo Coimbra da Passarela – uma ideia de inserção (ou imersão, como ele se referiu) e não de sobreposição, sendo esta a que mais naturalmente acontece na maioria das obras do Açude – que me remeteu a um de seus primeiros trabalhos: Cabine. Foi a partir desse trabalho que pude perceber como co-extensiva à sua ideia da paisagem e como possibilidade de superação da dicotomia, que expus acima, a relação entre o dentro e o fora, entre o que contém e o que é contido.

Cabine é uma de suas primeiras obras, e lembro-me que na época ela me interessou por operar como uma espécie de vaso comunicante entre dois mundos, ou melhor, entre duas profundidades. O espectador é convidado a olhar por um orifício e descobre do outro lado uma profundidade infinita feita de jogos de espelhos. É como se ele estivesse posicionado no ponto de confluência entre dois mundos. Como se a profundidade do mundo culminasse nele e a partir do seu olhar, através do orifício, uma nova profundidade se abrisse. Duas profundidades que convergem para o ponto do observador e que a partir dele divergem para duas realidades (real e ficcional). Assim como acontece com cada um de nós, resultado que somos da confluência das forças da realidade exterior e interior; do dentro e do fora.

Naquela época estava muito interessado na ruptura pós-neoconcreta e mobilizado pela ideia de que, na diluição da fronteira entre arte e vida, seríamos uma espécie de um dentro/fora da exterioridade ou de um fora/dentro de nossa interioridade. E Cabine, de certa maneira, materializava esse processo e explicitava "o local do observador e o local do trabalho e a relação entre esses espaços que o trabalho provoca", como escreveu Eduardo Coimbra em e-mail que me enviou.

A explicitação do local ou da posição do observador dentro da cena do mundo é, na obra de Eduardo Coimbra, uma necessidade de dar conta da falta a que nos referimos acima. Explico: Eduardo rejeita a solução renascentista da paisagem como recorte frontal do mundo a partir de um ponto fixo de observação, ou a solução cubista de fragmentação do objeto a partir de múltiplos pontos de referência da visão. Mesmo quando flerta com o cubismo, como na série dos Asteroides, a soma dos múltiplos pontos de vista neles detectados objetiva a criação de uma imagem com unidade e nitidez que, só num segundo momento, reparamos ser composta de fragmentos.

Sua pulsão plástica e visual é mais próxima da de Turner que, ao querer dar conta da visão no interior da cena do mundo, pedia para ser amarrado no mastro do navio em meio à tempestade para que pudesse pintá-la de forma mais direta e viva. Não se trata de pintar a "verdade" da percepção ótica como queriam os impressionistas, mas de experimentar o ato de ver que implica necessariamente um exercício de localização na profundidade do mundo e das múltiplas profundidades daí decorrentes (o invisível que permite o visível, lembrando Merleau-Ponty). Gostaria de reproduzir comentários que Eduardo Coimbra me fez a respeito de alguns trabalhos que remetem a essa questão:

Visível Invisível (...) são pares de fotos instantâneas e frontais, realizadas no entorno da Lagoa R. Freitas. O título remete ao fato de revelarem o visível e o invisível de cada imagem, a condição de estar dentro da paisagem só revelada pela outra imagem que lhe é cúmplice, que capta seu entorno além do espaço compartilhado.

(...)
Aqui é um conjunto de fotos do viaduto Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, tomadas instantaneamente a partir de oito pontos diferentes no entorno. A escolha do local se deu por conta da multiplicidade e da diversidade de fluxos que preenchem todos os campos visuais. O conjunto de fotos apresenta uma suspensão no tempo, permitindo um percurso por dentro do instante no reconhecimento de cenas e situações que se repetem devido ao cruzamento dos diversos pontos de vista.

Nível do Mar é um conjunto de fotos de horizontes marítimos tomadas a partir de onze pontos ao longo de toda a costa brasileira. Os pontos do litoral foram escolhidos no mapa, de maneira que o leque de visão de cada um interceptasse o adjacente dentro das 500 milhas da costa brasileira. A ideia é de que ao se olhar a seqüência de horizontes, lado a lado, tenha-se a visão de uma "ronteira lateral" do Brasil.

Dentro de uma abordagem das questões temporais e espaciais da paisagem, pode-se pensar que em
Aqui vários pontos de vista convergem para um mesmo ponto no tempo, enquanto que em Nível do Mar, vários pontos de vista convergem para um mesmo ponto no espaço.

O desejo de surpreender "o visível e o invisível da cada imagem" é resistir ao afastamento implicado no ato de ver renascentista, inaugurado pela matematização do espaço da perspectiva central. Não que tenhamos que contestá-la por contestar. Mas, a partir da modernidade, quando os saberes se voltaram sobre si mesmo, a visão a partir da interioridade passou a ser uma necessidade. Passamos a viver a crise das duas dimensões e a reivindicar um espaço tridimensional, que nos propiciasse uma relação mais confortável com a realidade do mundo atual: não mais tonificar o afastamento possível da profundidade, que ativa a frontalidade, mas buscar a experiência da e na própria profundidade.

Por isso, Passarela, no contexto mais amplo da obra de Eduardo Coimbra, é como um vetor que perfura a profundidade do espaço da floresta e cria as condições para ali entrarmos sem nenhuma outra preocupação – já que é uma plataforma ascendente que não leva a lugar algum – que não seja a de usufruir a experiência do convívio na interioridade do ato de olhar e na interioridade da paisagem. Uma forma de landscape ao contrário. Isto é, ao invés de ser uma paisagem que nos "escapa", é uma paisagem da qual nos apropriamos e que experimentamos no seu interior, mesmo sendo um elemento externo a ela.

Essa situação se aproxima de trabalhos como Visível Invisível, Aqui ou Nível do Mar, só que, diferentemente do ponto de observação e ponto do observado, como locais intercambiáveis de exterioridades ou de preenchimentos de vazios, quando a ideia de visão ainda está associada a uma experiência de exterioridade. No caso da Passarela há o desejo manifesto de preservar a experiência visual a partir da interioridade da exterioridade. O ato de ver como imersão no mundo físico; como mergulho na exterioridade. Como se fosse possível sermos a encarnação de um olhar cubista às avessas ou o Aleph borgiano. Na obra de Eduardo Coimbra esse olhar como experiência de imersão está presente nos Asteroides, que têm a vocação cubista da pluralidade de pontos de vista (fragmentos de visões, que nos oferecem uma nova totalidade facilmente identificável com a representação de algo que parece existir, mas que na realidade não existe).

Esse jogo entre realidade e ficção está presente também na Passarela. Essa obra não é uma maquete, como tantas que Eduardo Coimbra tem realizado, que não têm o objetivo de ser protótipos de construções reais, mas são experiências arquitetônicas que visam materializar ideias absurdo-paradoxais no sentido magrittiniano.

A Passarela, ao contrário, é uma construção arquitetônica real, mas, como as maquetes, não visa a nada de objetivo no mundo prático. É uma construção que trata das várias possibilidades do olhar. Diante dela, em um primeiro momento, experimentamos uma visão frontal. É uma aparição no meio da mata que atrai nosso olhar. Em um segundo momento, descobrimos que é possível trilhar um caminho aéreo (pelo alto das árvores) e trocamos a visão de fora por uma visão de dentro, a visão de baixo por uma visão de cima.

Ao conjugar através da Passarela várias possibilidades do olhar, Eduardo Coimbra nos convida a compartilhar de uma pesquisa que tem desenvolvido nos últimos dez anos que, segundo suas palavras: (...) exploram de diversas maneiras questões da paisagem e da criação de estruturas arquitetônicas que possibilitam experimentações diferenciadas do espaço real.

O que ocorre com a instalação do Açude é a experiência de deslocamentos de pontos de vista. A estrutura arquitetônica da Passarela nos permite experimentar a visão de dentro da mata ao ficarmos suspensos no meio das árvores. É como se quisesse resgatar a experiência radical de Turner, para quem a paisagem não estava nem tão longe como para os impressionistas, que precisavam se aproximar dela para pintá-la, nem tão próxima como para os renascentistas, que podiam se distanciar dela e pintá-la de memória nos seus ateliês. Para Coimbra a paisagem é antes de tudo uma experiência do ato de ver (como um Turner, na prática, e como um Magritte, na idéia) que traz consigo a irredutibilidade (e quiçá a angústia) entre a matéria e a imagem daquilo que é visível.

2008

obs: texto escrito para o catálogo da obra Passarela, instalada no Museu do Açude, Rio de Janeiro, em maio de 2008



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