Escotilha para outra ideia de espaço
Adolfo Montejo Navas

O sentimento de outro espaço, de outra percepção de nossas coordenadas espaciais e arquitetônicas vem sendo algo constituinte da última produção de Eduardo Coimbra, desde a década passada. E essa procura fenomenológica de viver-sentir-ler outra idéia de espaço passa por experiências diversas de site specific e intervenções urbanas, mas, ao mesmo tempo, por objetos, esculturas, instalações, onde tudo conserva certa mise em abisme rigorosamente construída, independentemente de serem obras públicas na cidade ou maquetes de arquiteturas possíveis–impossíveis. Sem esquecer também um humor quase silencioso, que ironiza nosso estatuto visual e seus atributos cognitivos. Um exemplo disto está antes da entrada da galeria, com um objeto de grande tamanho que vira instalação na vitrine de fora, Piscina com Passagem; ele anuncia em sua visualização a ambigüidade espacial para a qual somos convidados: o topos que muda pelos tropos visuais e conceituais do artista. Outra evidência, já dentro do espaço expositivo interior e sempre com obras de 2011, é a subversão na apresentação das maquetes, que fugindo da horizontalidade canônica e optando por uma apresentação frontal, produzem uma estranheza perceptiva, como acontece com os novos desenhos tridimensionais, híbridos, Sombra e Reflexo e Situação Espacial, que cavam seu traço fora da parede, confrontando também nosso hábito especular.

Se a inadequação entre aparência e realidade é uma das frestas estéticas do trabalho de Eduardo Coimbra, um campo de exploração que percorre desde registros de esculturas, maquetes, desenhos a estratégias urbanas ou espaciais, o conteúdo preciso aqui também é o jogo – esse lugar simbólico onde podemos ser livres entre regras, livres do outro jogo da vida contingente – e a presença da arquitetura. Daí o título dado à mostra, Arquitetura do Jogo, tão plausível de reversibilidade, pois também se pode enunciar o jogo da arquitetura –; ambas as coisas acabam sendo potencializadas como invenções semânticas para rotundos exemplos.

Como sabemos, os estádios têm algo de monumentos mitológicos da civilização contemporânea (também de barbárie) e são espaços rituais. A continuação na realização de maquetes de Estádios pelo artista ganha um desdobramento impensado em sua disposição visual, pois eles devem ser vistos de frente, olho no olho. Neles podemos observar dois aspectos: as alteridades espaciais de outro futebol re-inventado e que a interpenetração jogadores-espectadores também está em jogo – aliás, como na arte. De tal modo que os espectadores estão colocados numa dinâmica semelhante àquela vivida pelos jogadores, como confessa o artista: “a questão dos Estádios é criarem uma condição espacial para a audiência que dialogue com a dinâmica do jogo”
(1): o que significa que os estádios não traduzem completamente o mesmo futebol, senão outras geometrias e possibilidades do jogo patenteado pelos ingleses, como já tinha sido feito nos três anteriores estádios do artista, em que a configuração da forma do campo e a sua sinalítica se espelha na estrutura do estádio, na arquibancada, como uma mesma topografia. (Outra questão sugestiva seria saber como o simulacro visual destes singelos estádios, acaso mais afortunados e menos problemáticos que os mundialísticos de 2014, seriam vistos pelo próprio establishment esportivo da CBF).

Assim como existem os Estádios (III, IV e V), o jogo muda de figura com os Quarteirões, outras maquetes invertidas que reproduzem uma série de casas e ruas em seus planos de cor marrom. Ali, a estrutura da vida é regulada pelo habitat das moradias: a vista de cima dos telhados das casas de uma ou duas águas oferece uma geometria existencial irônica (que se poderia somar, em espírito crítico, aos aportes das heliografias urbanas de León Ferrari dos primeiros anos da década de 80).

Se a exposição tem uma entrada no exterior com a Piscina com Passagem, a sua passagem é marcada pelas Escadas e as Escotilhas, verdadeiras peças-declaração dessa “torção do espaço” provocada (em palavras do artista)
(2). Ainda mais quando esta série de escotilhas não deixa de ser território de formas emblemáticas, um convite a um olhar sempre em viagem, deslocado. Embora a mostra pareça não querer ter saída ou solução simples, ficando no rondo visual das peças do meio da nave central, onde tanto uma escada e uns cubos/dados pós-minimalistas se encontram (lançados ao estilo Mallarmé, em luta para propagar o acaso visual que ambos geram). Dan Descendo a Escada é outra peça de chão, a rigor meta-lingüística, e cujo simulacro interno se confunde com o externo pela existência de espelhos em sua configuração. Por outro lado, a ressonância que produzem as faixas brancas e negras e o título consegue religar Daniel Buren à famosa tela de Marcel Duchamp, converter uma escada num artefato que contém outra escada dentro. Às vezes o espaço pode ser representação de outro espaço, contendo um lado/dado metafórico. Nesse sentido, acaba gerando certa cumplicidade conosco a presença de duas esculturas de dados (com números)(3), Dados, que se embrenham no chão, no espaço (como já aconteceu anteriormente com outras peças feitas de piso de chão, de taco de madeira/tábua corrida), alimentando novos reflexos entre eles e o chão, certa miragem em nossa interlocução perceptiva (4).

A “reprodução” da representação que levantam todas estas novas imagens desmonta o ponto de partida originário da realidade, paradoxalmente, com instigantes aproximações, onde a realidade espelha-se, especulada, com a sua miragem em crescendo (seja a luz transparente na piscina, a inversão enigmática das escadas, o fundo falso das escotilhas) e delata a reversibilidade de qualquer jogo (uma palavra nuclear no vocabulário do artista). Trata-se de imagens que guardam armadilhas, mas que funcionam, produzem alterações em nosso costume estético. E onde o jogo com a parede, com o chão – com as dimensões – cria situações, desmitifica nosso lugar de referência como eixo central. O artista não deixa de mover o piso da percepção, onde tantas vezes nos ancoramos.

De tudo isto se desprende uma filosofia artística e visual relativista que conjura contra o inevitável e o padrão totalitário da representação mimética, categorizada, e que o próprio Magritte teria escrutado com a mesma atenção que nós. As nuances metafóricas, as insinuações perceptivas, o que está dito de forma visualmente instigante, diríamos até oblíqua, é o alvo operativo desta poética sedutora e ao mesmo tempo densa, enigmática, que sempre re-significa todos os seus objetos/objetivos num diapasão cognitivo característico, e que amplia aqui seu raio de ação em oito grupos de recentes peças mais, numa mostra-escotilha que almeja outra idéia de espaço. De fato, Eduardo Coimbra sempre oferece outra escotilha, uma possibilidade de enxergar, de novo, como estamos olhando as mesmas coisas.

2011

notas:
1  Eduardo Coimbra, emails do autor, 25 de março e 13 de abril de 2011
2  E. Coimbra, op. Cit. (13 de abril de 2011).
3  Como análise desta forma prototípica, estes dados-cubos já podem ser inscritos na rica história deste formato: Jorge Oteiza, Robert Morris, Sol Lewitt, Richard Serra, Eva Hesse, Franz Weissmann, Nacho Criado, Regina Silveira, entre outros.
4  Se há certa conexão destes Dados com o conjunto de Peças de chão (2006), incluídas em Exposição de Arte, Paço Imperial, Rio de Janeiro, 2007, há outra relação interessante entre Dan Descendo a Escada e Criado-mudo (2000), uma peça-maquete que vinculava geometria mondriana e oiticiana como só um poema-objeto pode fazer. 



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