Arquitetura moderna e paisagem
Ana Luiza Nobre

Fascinado pela imensidão do território que encontra em sua primeira viagem a América, em 1929, Le Corbusier desenha sem parar: edifícios, cidades, pessoas, rios, morros, favelas. O Pão de Açúcar surge em vários desenhos. Um deles chama atenção, em especial, pela relação que estabelece entre arquitetura e natureza. Na verdade, são 4 desenhos em seqüência: o Pão de Açúcar; o Pão de Açúcar e uma palmeira; o Pão de Açúcar, uma palmeira e uma árvore vistos por um homem sentado numa poltrona; e por fim, o Pão de Açúcar, uma palmeira e uma árvore vistos por um homem sentado numa poltrona, através de uma grande plano de vidro.

A seqüência desses desenhos é reveladora, ao mesmo tempo, da concepção de arquitetura e de paisagem de Le Corbusier, cujo pensamento viria a constituir a baliza central da arquitetura moderna no Brasil. Porque a paisagem, nesses desenhos, é claramente algo que se constrói pela arquitetura. E neles reside a própria definição moderna da relação entre arquitetura e natureza: a arquitetura edita a natureza, ordena-a, lhe dá medida e sentido, ao mesmo tempo em que dela se distingue ao se definir como produto de cultura, isto é, da técnica e da razão humana.

Sentado comodamente numa poltrona, única peça de mobiliário num interior luminoso e asséptico, inteiramente projetado, dimensionado e controlado, o homem de Le Corbusier contempla a natureza através da arquitetura. Assim, ele se recorta da brutalidade que o cerca e se resguarda dos excessos antes temíveis dos Trópicos (sua vastidão e desmedida de sol, chuva, vegetação, poeira, insetos etc). Mas escapa do isolamento ao alcançar com os olhos essa mesma natureza – agora acrescida de valor – através do anteparo de vidro instalado diante de si: não uma janela, paradigma do ilusionismo perspectivo, e sim um pano de vidro, paradigma do espaço moderno em arquitetura. É como se esse homem dissesse: arquitetura e paisagem são ambas produtos do meu intelecto. Ou: "paisagem é cultura, antes de ser natureza"
(1).

Mas se toda paisagem pressupõe movimento – insinuado pelo navio que cruza a Baía no primeiro desenho, ou pela vegetação que emoldura a massa do Pão de Açúcar nos desenhos posteriores – esta tende à estabilidade. Não há qualquer sinal de turbulência, desequilíbrio ou entropia. Nem agora nem mais adiante. É como se ali, no interior da arquitetura, a movimentação incessante da natureza estivesse finalmente dominada e domesticada.

Cabe à arquitetura, afinal, estabilizar a paisagem. No Brasil, no entanto, será preciso ainda estabilizar o solo. E é isso o que fazem os jardins, ou melhor, as composições paisagísticas de Roberto Burle Marx: com seu alto grau de estruturação, eles oferecem uma base em estado de equilíbrio imprescindível para o desenvolvimento da arquitetura moderna num meio físico e cultural tão instável quanto incerto, amorfo e resistente a qualquer configuração estável.

Daí o enorme trabalho – nem sempre evidente, à primeira vista – depositado em seus jardins, em nome do projeto de disciplinar e civilizar uma natureza que não se submete facilmente à vontade humana. Na Residência Edmundo Cavanellas, por exemplo, projetada por Oscar Niemeyer em Pedro do Rio (1954), o tabuleiro de grama bem delimitado e podado, remete, no fundo, à tradição do jardim clássico francês: um jardim que não quer se deixar contaminar e conta com um regime severo de manutenção – como boa parte da arquitetura moderna no Brasil, aliás. Porque de fato não são poucas as obras modernas no Brasil que tendem a ignorar o fluxo do tempo (ao insistir em viver num eterno presente, como em Niemeyer) ou a reduzir sua significação (ao pressupor uma manutenção permanente a ser mantida a todo custo, como no caso dos irmãos Roberto).

O entendimento desse problema, por Burle Marx, ajuda a explicar seu absoluto protagonismo no quadro da arquitetura moderna no Brasil. Se há outros que se dedicam simultaneamente ao paisagismo no país, como Mina Klabin ou Waldemar Cordeiro, sua atuação é infinitamente mais pontual e discreta, e em muitos sentidos incomparável com a dimensão pública tomada pela obra de Burle Marx.

Há, em todo caso, um conjunto de questões que imbricam arquitetura moderna e paisagem no Brasil de uma maneira muito singular dentro do quadro mais amplo da modernidade arquitetônica. Por isso, se em princípio pode surpreender a ausência de referência a Burle Marx em Le Corbusier, é preciso considerar o quanto a concepção de paisagem de um e outro vão se mostrar, na verdade, bem distintas. Formado no ambiente cultural europeu, o pensamento de Le Corbusier se desenvolve sobre um solo profundamente moldado – e no seu entender, contaminado – por uma tradição urbana da qual o objeto arquitetônico precisará se desvencilhar, numa estratégia simultânea de depuração formal. Daí o recurso ao pilotis, a elevar o objeto arquitetônico do solo e recortar gestalticamente sua forma pura contra um céu e um solo ilimitados e indistintos, um fundo neutro e uniforme que Le Corbusier prefere chamar simplesmente de "espaço verde" – por oposição a toda uma tradição paisagística e à própria noção de jardim, então amplamente associada ao Movimento das Cidades-jardim, que se quer deixar para trás
(2). Pode-se ainda suspender o verde, em terraços-solários concebidos como um solo artificial ou a quinta fachada do volume edificado, como na Villa Savoye (1928). Ou então, simplesmente dispor "algumas belas árvores" diante das "fachadas límpidas"(3) – árvores, e não jardins; i.e, elementos verticais que servem de contraponto à horizontalidade das janelas corridas identificadas pelo próprio Le Corbusier como um dos princípios da nova arquitetura.

No Brasil, porém, jardim e edifício se interpenetram, se fundem, e até se confundem, acentuando ainda mais o grau de reversibilidade entre interior e exterior reivindicado pela arquitetura moderna. Isso pode ser observado já em 1930, nos desenhos de Lucio Costa para a segunda versão da Casa Fontes, em que as colunas soltas, que poderiam ter sido extraídas da Villa Savoye, se mostram inteiramente tomadas por trepadeiras. Aqui, então, já não bastará projetar apenas o edifício; será preciso projetar também o solo – recriando-o, em certo sentido, como quem oferece uma plataforma segura para a arquitetura moderna, a conter/limitar um horizonte amplo demais, e um meio afinal resistente a qualquer formalização.

Os problemas surgem quando essa concepção de paisagem, essencialmente moderna, se encontra com uma concepção contemporânea de arte. O resultado pode ser desastroso, como em Inhotim, onde o paisagismo de Burle Marx tende a enquadrar obras que não suportam enquadramento. Não é o que acontece com o trabalho de Eduardo Coimbra na Pampulha, porém, onde a discussão do conceito moderno de paisagem e a adesão à arquitetura, já intrínsecos à sua prática artística, se reapresentam, prontos a desacomodar agora limites e conceitos modelados pela arquitetura moderna, num de seus espaços mais célebres.

De saída, não há nenhuma intervenção marcante na paisagem criada por Niemeyer e Burle Marx, que se mantém intacta, fiel à sua condição de monumento. Só à entrada do cassino/museu o jogo começa, enquanto a noção moderna de paisagem vai sendo desafiada, junto com conceitos centrais à arquitetura moderna. A operação envolve deslocamento e transposição/transplantação: de limites estabelecidos, que se vêem continuamente tensionados e revertidos; de materiais heterogêneos (plástico, terra, grama), que são levados do exterior para o interior; da vista, que desliza sem pausa entre os muitos recortes da Pampulha, em busca de estabilidade.

A mesma estabilidade que buscamos ao por os pés no museu, onde basta um pequeno descuido, um passo em falso, para tropeçar nos vasinhos cheios de grama que invadem o hall. Vasos ou copos? Difícil decidir. Nem bem vasos, nem copos. Tampouco potes, talvez vasilhames. Em todo caso, pequenos recipientes descartáveis, de plástico transparente, que se na sua distribuição sobre o piso conformam um suave tapete verde interrompido apenas pela linha sinuosa que prolonga as curvas de Burle Marx e Niemeyer, em sua elementariedade e vulgaridade violam a escala e a excepcionalidade da Pampulha, e por pouco não a profanam. Inversamente ao caráter atemporal e fortemente autoral do conjunto arquitetônico-paisagístico da Pampulha, são recipientes produzidos e consumidos em massa, que podem ser encontrados no supermercado, por quase nada, e ninguém espera que durem muito. Pobres e inexpressivos, frágeis e banais, sequer se prestam à reutilização, e em todo caso não parecem dignos da obra de Burle Marx e Niemeyer – esta, sim, destinada à eternidade. Refuncionalizados, guardam fragmentos vivos da paisagem da Pampulha, como miniaturas impróprias do jardim circunstante, cuja grandeza subvertem. Diante das curvas geometrizadas dos jardins de Burle Marx, das massas de concreto, da forma unitária, do gesto desenvolto e dos esforços estruturais da arquitetura de Niemeyer, surpreendem por sua descontinuidade, ausência de densidade e coesão – em que, por outro lado, também se reconhece aquela recusa ao enraizamento que caracteriza boa parte da arquitetura de Niemeyer.

Carregado para dentro do museu, o verde sem raízes desconcerta, ao deixar para trás as variações e combinações (de cores, tons, texturas, espécies) que animam as composições paisagísticas de Burle Marx. E mais uma vez, a operação do artista sobre a paisagem se dá por meio de materiais em tudo alheios à arquitetura que a constitui: a fita adesiva, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Colagem, 2000); a terra, no Museu de Arte Contemporânea de Niterói (Invenção da Paisagem, 1998); os copos – ou o que quer que sejam – aqui. São materiais rebaixados, efêmeros e instáveis, que transgridem a eternidade e estabilidade reivindicada pela arquitetura moderna, e até ousam zombar dela. Mas também reacendem nosso olhar sobre obras que, de tão consagradas, começam a correr o risco de cristalização.

Embaralhada por meio de múltiplos mecanismos ópticos, a paisagem cuidadosamente construída por Niemeyer e Burle Marx perde, afinal, muito da sua distinção na ocupação progressiva dos espaços do museu: da grama que invade e atravessa o hall de entrada aos espelhos no espaço suspenso do mezanino e daí às caixas de luz, no escuro do auditório. E se aí, a paisagem sucessivamente recortada e fragmentada finalmente se reintegra numa visão panorâmica, agora o que perturba é a luminosidade estranha das fotografias, emitida por uma fonte de luz artificial oculta por trás dos painéis e intensificada pela completa ausência de aberturas para o exterior. Quanto mais tempo dedicamos à observação dessas fotografias (8 fotografias de grande extensão, atuando em pares justapostos), mais elas vão ganhando contornos e se deixando ver. Mas as formas exuberantes de Niemeyer e Burle Marx acabam sendo amortecidas e o que vemos já não é senão a atmosfera resultante da média ponderada e quase monocromática de todos os elementos que compõem a paisagem da Pampulha hoje: os jardins, as pedras, o céu, a água, a arquitetura de Niemeyer e as construções anódinas do entorno. Sem profundidade, as imagens forçam o corpo de novo para fora, em busca de ar fresco e luz natural. Assim, a paisagem é todo o tempo reposta em funcionamento, ao se ver atravessada pelo estímulo constante dos olhos de quem procura, em vão, um ponto estável neste ambíguo museu/cassino/observatório, fadado a uma vida breve.

Desse modo, a interrupção do sentido de permanência e contemplação tradicionalmente associado tanto ao museu quanto à paisagem não só impede a postura contemplativa do homem corbusieriano, como também desafia o conservadorismo das instituições museológicas. Mesmo o banco aparentemente mais trivial, situado diante do pano de vidro do mezanino, é trucado, como se fosse possível livrá-lo de sua identidade funcional, junto com os copos (?) no térreo.

Até quando esses copinhos estarão aqui? Imagino que a matéria orgânica contida neles vai acabar rompendo suas tênues paredes de plástico e tenho vontade de levá-los para casa e oferecer-lhes novo estatuto, como um souvenir improvável da Pampulha. Parecem tão vulneráveis e disponíveis que por pouco não me agacho para tomar um deles, qualquer um deles. Mas provavelmente não terei decisão sobre seu fim iminente e eles serão simplesmente descartados, cumprindo assim o destino talvez inescapável da arte no mundo contemporâneo.

2011

obs: trabalho apresentado em mesa redonda realizada no MAP/Museu de Arte da Pampulha, em 19 nov 2011, no âmbito da exposição Museu:observatório, de Eduardo Coimbra, com curadoria de Renata Marquez.

notas:
1  Simon Schama, Paisagem e Memória, São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.70.
2  originado na Inglaterra no final do séc XIX, por obra de Ebenezer Howard, e considerado passadista por Le Corbusier, por propor uma alternativa para as grandes cidades com base em atrativos da vida no campo.
3  Le Corbusier, Precisões sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p.68



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