Só vestígios
Ana Luiza Nobre

A princípio, a astúcia do Projeto para o Palácio Capanema, de Eduardo Coimbra, está em reproduzir as esquadrias das janelas do antigo Ministério da Educação – em seu detalhamento, material, cor, proporções e escala. Assim o trabalho se prende, claramente, à arquitetura que o precede e abriga. A precisão no desenho dos detalhes e na montagem dos caixilhos metálicos, o respeito às relações proporcionais, à modulação e aos eixos existentes; tudo ali faz alusão explícita à obra inaugural e mais significativa da arquitetura moderna no Brasil, e também atesta o quanto o artista se demorou sobre ela, decidido a compreendê-la do ponto de vista da sua concepção espacial e de cada um dos seus elementos constituintes. Mesmo a decisão de manter-se a poucos centímetros de tocar as colunas reconhece e presta tributo a um dos princípios básicos da arquitetura racionalista da qual este edifício quer ser, e é, um representante legítimo: a independência entre estrutura e vedação, posta em evidência justamente na planta-baixa do salão de exposições.

Vê-se logo, no entanto, que a obra busca uma relação mais densa com a arquitetura: na verdade, tão logo reconhecemos ali o rebatimento das esquadrias existentes, o jogo começa. Transportadas para o interior do edifício e dispostas transversalmente em relação às janelas contínuas do mezanino, as novas esquadrias acabam desafiando o olhar habitual sobre a arquitetura. A um olho mais atento, as quatro fileiras de painéis revelam-se apenas aparentemente iguais: subdivididas verticalmente em faixas desiguais mas proporcionais, articulam-se ao dinamismo gerado pela alternância entre panos fixos e móveis das esquadrias originais, e à frequência a bem dizer incontrolável das superfícies das fachadas em face do abrir e fechar de suas inúmeras janelas de guilhotina.

O corpo-a-corpo com a obra vai revelando, então, quase uma violação do sistema arquitetônico de Le Corbusier, do qual este edifício deriva. E não é só a ordem funcionalista que se vê perturbada pelo deslocamento das esquadrias para o interior (para o qual também concorre decisivamente a eliminação dos puxadores, elementos que denunciam a razão prática das janelas). Contido, em princípio, dentro de limites extraídos da arquitetura – o intercolúnio interno, tanto no sentido transversal quanto no longitudinal – o trabalho obstrui o fluxo contínuo prometido pela planta livre, e acaba definindo uma circulação paralela à lâmina vertical que o bloco de exposições intercepta e anuncia. Ainda que o espaço continue vazando para além dos painéis-divisórias-esquadrias, o resultado é um curto-circuito da obliquidade sugerida pelo pilotis, cujo vazio não por acaso desencoraja a apreensão frontal da arquitetura, abrindo-se à dinâmica própria da cidade.

A despeito da sua discrição, e da relação solidária com o edifício projetado por Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy e outros, o trabalho de Eduardo Coimbra está longe, portanto, de se deixar dissolver na arquitetura. E se à primeira vista ele quase não existe, à medida que o percorremos ele vai tomando corpo e aparecendo, sem alarde, junto com aqueles que se dispõem a praticá-lo.

Aos poucos, o que era uma simples esquadria passa a janela, enquadramento, moldura. E quando nos damos conta já estamos plenamente envolvidos na experiência singular da obra, às voltas com termos indissociáveis do campo da arte e da arquitetura, sem escapar, com os movimentos e deslocamentos do nosso próprio corpo, de uma espécie de trompe l`oeil que joga com o vazio e "o espaço mais fundo que existe", no dizer de Clarice Lispector: o espelho.

Neste "vazio cristalizado", dobra-se, ad infinitum, o "espaço indizível" da arquitetura corbusieriana, agora reativado (e embaralhado) pelo nosso próprio corpo, recortado em imagens fragmentárias e esquivas que provocam uma estranha deslocalização e ainda assim repõem, a todo momento, os problemas da frontalidade, da planaridade e da totalidade na arte.

O todo, se existe, está no limite de ser guilhotinado. Será reconstruído mentalmente, talvez, enquanto circundamos a obra, passamos por ela, nos debruçamos sobre ela. Não é muito, em todo o caso, o que podemos ver de nós mesmos no lapso de tempo em que nos flagramos ali, com um arrepio que não deixa marcas, só vestígios.

2011

obs: texto escrito para o catálogo da obra Projeto para o Palácio Capanema, instalada no Edifício Gustavo Capanema, Rio de Janeiro, em novembro de 2010



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