A escultura como abrigo
Felipe Scovino

Sempre interessou a Eduardo Coimbra compreender e alargar os sentidos a respeito do que significa paisagem. De uma maneira onírica, o artista fez com que céu e terra se encontrassem em Nuvem (2008) e, portanto, o que era da ordem do ar e da visão pudesse – poeticamente – ser finalmente experienciado também através do toque. Em Asteroides (1999), uma série de recortes de uma paisagem torna aparente um quebra-cabeça que formalmente alude ao astro que dá título à obra. É a concepção de um novo mapeamento sobre o mundo, como se tivéssemos voltado à Pangeia: um mundo uno e indivisível e que, por isso mesmo, só pode habitar o território da ficção.

Contudo, duas outras obras parecem ter um grau de correspondência mais próximo com as duas Esculturas (2013), obras que estão em questão neste breve ensaio, instaladas temporariamente na Praça Tiradentes. São elas: Através (2002) e Natureza da Paisagem (2007). Na primeira obra, um projeto ainda não executado, o artista propõe a fabricação de um morro que seria atravessado por manilhas com uma espessura e altura que permitiriam ao público (um adulto com as costas levemente arqueadas seria um parâmetro) percorrer de ponta a ponta aquela natureza artificial. Já Natureza da Paisagem, realizada em 2007 no MAM-RJ e, em 2011, no Museu de Arte da Pampulha, consistiu no deslocamento simbólico da paisagem externa – ou melhor, vizinha ao museu – para dentro da instituição. Milhares de vasinhos de grama foram introduzidos no cubo branco, não efetivamente como uma situação de embate com o cubo branco, mas fundamentalmente como uma situação de dobra, no sentido deleuziano do termo, como se nada pudesse separar os dois espaços, já que eles seriam “um espaço de montagem contínua”, constituindo um “dentro” que é a “dobra do fora”. As curvaturas da dobra se entrelaçariam sem conseguirmos distinguir o que estaria fora ou dentro.

E é neste ponto que esse pequeno histórico das obras de Coimbra se conecta às duas Esculturas. Instaladas no Centro do Rio de Janeiro em um momento em que a cidade passa por um grave processo de gentrificação, especulação imobiliária, aumentos de aluguéis e mobilidade geográfica de seus moradores, é curiosa a forma como a geometria instalativa do artista ressalta o uso de uma escultura como uma casa-abrigo. Discutindo o lugar de uma prática social da arte e o que difere, e ao mesmo tempo aproxima, espaço público e privado (outro tema recorrente na obra do artista), ao ter o seu volume vazado constantemente preenchido por transeuntes da praça, que investem naquela obra como um espaço lúdico, ou moradores de rua, que a utilizam como casa, as Esculturas põem em questão um modelo de modernidade que, com sua ideologia globalizante e perversa – visível na redistribuição precária do espaço e dos poderes político e econômico –, transmite sinais de colapso, como temos assistido desde junho deste ano no Brasil com as manifestações populares. As obras Esculturas nos alertam significativamente que os limites entre público e cidadão parecem ter sido borrados. Há o tom lúdico nas obras, mas fundamentalmente o posicionamento da arte como uma ação coincidente com a política. Faço referência a outro momento político das artes que formalmente encontra uma ressonância com estas obras. Numa atitude ideológica, e até certo ponto utópica, a Bauhaus desejou contaminar o mundo com arte. A geometria, aliada a um processo de industrialização e dispersão nos meios de consumo, estava contida em produtos que variavam de uma caneta até a construção de uma casa. Guardadas as devidas especificidades e proporções, geometria e política encontram-se novamente nessas Esculturas.

As novas configurações que um pensamento arquitetônico, como o da escultura em questão, promove na cidade também significam refletir sobre a esfera política da arte. É singular o fato de que as duas esculturas estão situadas ao lado de um dos monumentos mais antigos da cidade
(1) e o quanto esse embate entre o novo e o antigo, o eterno e o transitório, o opaco e o translúcido repercute na continuidade da reversão de um espaço (2) que se torna cada mais vez penetrável ou fluido para o público, e envolve uma discussão que passa pelo campo da estética até temas sociais como o acesso livre às áreas públicas de lazer, cidadania e o sentido de pertencimento à cidade.

Nas duas Esculturas, a paisagem funde-se à obra. Todo o entorno é ativado pela escultura pelo simples fato de ela ser uma estrutura que é atravessada pelo olhar. O seu volume é “preenchido” pelo vazio, que nesse caso é o próprio espaço de apropriação e experimentação do público. É ali que a escultura é moldada por ações tão díspares quanto transformar-se num cômodo ou servir como um anteparo para brincadeiras. É o momento em que o espaço social e o político se fundem ao mesmo tempo em que se revela uma das mais significativas contribuições que a obra de Coimbra traz para o repertório da arte.

2013

obs: texto escrito para o catálogo da exposição 2 Esculturas, instalada na Praça Tiradentes, Rio de Janeiro, em setembro de 2013

notas:
1  A estátua equestre de D. Pedro I, instalada na praça em 1862.
2  Em agosto de 2011, a Praça Tiradentes teve as grades que a cercavam por completo retiradas.



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