Todos os jogos, o jogo
Agnaldo Farias

Se é fato, como argumenta Johan Huizinga, que o instinto do jogo atravessa e alimenta todas as realizações humanas, e que suas características fundamentais são "ser ele próprio liberdade" e "evasão da vida 'real'", para Eduardo Coimbra o futebol é, entre todos os jogos, o jogo; é a prática da liberdade e da necessária evasão da "vida real". E a justificativa poética para a unanimidade mundial desse esporte repousa, acima de tudo, no formato planetário da bola, o centro móvel e elástico do desejo de quem joga ou apenas assiste a uma partida de futebol. Ou o leitor ainda não se deu conta de que TODOS os dez esportes mais populares do mundo acontecem ao redor da bola?

A amplitude e magnitude dos acontecimentos desencadeados pelo jogo de futebol confirmam a opção amorosa de Eduardo Coimbra, artista e vascaíno: entre todos os esportes, o futebol é o que arrasta aos estádios as maiores multidões, ao mesmo tempo em que especa multidões muito maiores, só que atomizadas, em frente às televisões. No centro da atenção de todos, dos jogadores ao público, a bola.

Brincar solitariamente com uma bola, ajustar os meneios do corpo às suas vontades ao mesmo tempo em que se tenta fazê-la ajustar-se às nossas vontades implica o abandono momentâneo da realidade circundante. Envolver-se com uma bola equivale a apaixonar-se por um ser suscetível, caprichoso, pouco afeito à domesticidade e, acima de tudo, muito, muito egoísta, embora nada carente. É uma paixão inexplicável, que irrompe muito cedo, quando mal começamos a engatinhar. Basta contemplar uma criança entretendo-se com ela, rindo-se até as gargalhadas, surpresa com seus quicares desconexos, para entender por que a bola é um sucedâneo do travesseiro ou do bichinho de pelúcia. Segundo pesquisa abalizada pelo jornalista esportivo PVC, Paulo Vinicius Coelho, o craque Neymar, aos oito anos de idade, guardava em seu quarto trinta bolas de tudo quanto era tipo.

O controle da bola, sua prática, é processo que exige foco, concentração, um quase alheamento de todo o resto, menos da parede contra a qual ela é chutada, do taco ou bastão com o qual ela é arremessada, do gol vazio mirado a distância. Na qualidade de objeto que convida o corpo a se movimentar, em se tratando de futebol, a bola é algo ecumênico e universal, pois é ela que catalisa o chute, esse gesto atávico, provavelmente nascido no dia seguinte ao que descemos das árvores e começamos a caminhar.

A bola pode assumir muitas e variáveis conformações: das oficiais de agora, realizadas em couro sintético, com cores, brasões, ornamentos e adereços cintilantes, em tamanho e peso em concordância com as modalidades do esporte – futebol de campo, de salão, soçaite, de praia –, até as ordinárias, feitas de borracha ou de matéria plástica vagabunda, que logo se deformam. Como tudo, a bola pode ser extraída ou reinterpretada a partir de um elenco de materiais virtualmente infinito, a começar pela clássica e nostálgica bola de meia, feita de pano, forrada com papel, serragem, o que estiver à mão. Mesmo deformadas, assimétricas, oblongas, ovais, pesadas e duras, rígidas e leves, fofas e incorpóreas, como as bolas de papel que vão se destruindo nas rodas durante os intervalos dos almoços nos escritórios, toda bola tem seu mérito, sua personalidade própria, posto que seus ardis fazem aflorar habilidades corporais que, de outro modo, permaneceriam sepultadas.

Para quem foi acometido pela febre da bola, pelo impulso de lidar com algo totalmente distinto de si com vistas a torná-lo parte de si mesmo, um apêndice portátil, para quem não resiste à obsessão de tentar controlar uma bola, chutá-la, lançá-la, arremessá-la, acertá-la contra um alvo, para quem, com ela aos pés, pretende ensaiar, ainda que canhestramente, as coreografias do avanço em passos largos, dos dribles sobre adversários visíveis ou invisíveis, cúmplices ou indiferentes, qualquer coisa serve como bola, transforma-se em bola, é visto como bola.

 

Há algum tempo venho afinando certa mania. Nos começos chutava tudo o que achava. A vontade era chutar. Um pedaço de papel, uma ponta de cigarro, outro pedaço de papel. Qualquer mancha na calçada me fazia vir trabalhando o arremesso com os pés. Depois não eram mais papéis, rolhas, caixas de fósforos. Não sei quando começou em mim o gosto sutil. Somente sei que começou. E vou tratando de trabalhá-lo, valorizando a simplicidade dos movimentos, beleza que procuro tirar dos pormenores mais corriqueiros da minha arte se afinando.
Chutar tampinhas que encontro no caminho.

João Antonio
Afinação da arte de chutar tampinhas 

 

Graças à onisciência obsessiva do boleiro, a bola está em todas as partes; e está claro que, quando veio à luz a primeira fotografia do nosso planeta, vários foram aqueles que imaginaram a possibilidade de uma pelada interplanetária.

Feitas as contas, brincar com uma bola tem um tanto a ver com a dança e outro tanto com o boxe. Com a dança, especialmente a que se leva desacompanhado, por conta da entrega à música, aos seus ritmos e intensidades, à sensação de ser incorporado por algo que vem de fora, que se agarra à pele, que entra pelos poros. Com o boxe, porque a bola não se enquadra exatamente como um parceiro, mas como um oponente cheio de malícia. Veja seu comportamento deliciosamente reprovável diante dos jogadores inábeis: ela os ataca, não golpeando-os, mas humilhando-os sob a forma de movimentos desgraciosos que ela os obriga a executar, desnudando sua natureza mondronga, fazendo-os persegui-la em corridas atabalhoadas, provocando trompaços involuntários. Craque é aquele que tem intimidade com a bola, e, segundo Nelson Rodrigues, a bola o reconhece e lambe seus pés como uma cadelinha. Por outro lado, quando diante de um inimigo, um perna de pau, um cabeça de bagre, a bola não hesita em demonstrar quão genial pode ser o ridículo.

É fácil entender o porquê de se criarem jogos fundados na disputa da bola. Assim como o ponto é o primeiro elemento da geometria de Euclides, embrião de todas as construções abstratas, a organização de grupos e o estabelecimento de regras sobre o que se fazer com a bola são desdobramentos naturais de sua condição.

Futebol no Campo Ampliado – título da mostra de Eduardo Coimbra na qual ele reúne oito estádios de futebol, oito variações do futebol expressas em oito maquetes totalmente distintas no que se refere a regras, número de equipes e de jogadores, dimensões e formatos dos campos, dimensões e formatos dos estádios – faz do jogo de futebol o ponto de partida para outros jogos. Das geometrias táticas intrínsecas às suas regras às retas e curvas desenhadas a cal, por meio das quais os limites externos e internos do campo são demarcados, o gramado verde troca sua unidade aparente por espaços hierárquicos. Bola, gramado, linhas divisórias, jogadores, árbitros e regras compõem a arquitetura do futebol, um microcosmo capaz de aglutinar multidões, fazê-las entrar em êxtase, transformá-las em hordas furiosas.

Ampliando o horizonte dos jogos, Eduardo Coimbra faz com que o jogo de futebol seja interpenetrado pelo jogo da arte, o jogo das linguagens, da expressão e sensibilidade humanas, sendo todo ele cheio de regras sutilíssimas, passíveis de mudar no decorrer do tempo. O artista realiza esse jogo através da apresentação de oito objetos fixados na parede, oito peças que são, simultaneamente, pinturas, esculturas e maquetes – o que é o mesmo que dizer que não se encaixam em nenhuma dessas categorias. Assim como, na fatídica Copa do Mundo sediada em nosso país, o goleiro alemão Manuel Neuer surpreendeu o mundo jogando como zagueiro, assim como, na mesma Copa, as câmeras televisivas passaram a definir os resultados dos jogos com imagens além da possibilidade do olho humano, o jogo da arte passa por transformações contínuas, incorporando temas, atitudes e processos que, em princípio, não lhes dizem respeito.

No caso do futebol e desses oito estádios, tudo nasce da bola, é ela que enseja a construção de sentidos de ordens diversas, que transcendem sua dimensão física para enredá-la num universo maior e intrincado, além do campo e dos jogadores: a cor e desenhos dos uniformes, a adesão fanática dos torcedores, a irisada fauna dos técnicos e cartolas, o comércio dos jogadores, a economia de uma cadeia produtiva de proporções inimagináveis.

Toda essa rede decorre da versatilidade do futebol, da sua ontologia socializante, fonte de baixo custo de uma alegria inexcedível, da facilidade com que se adapta às estritas dimensões de uma quadra, aos campinhos demarcados em geometrias arrevesadas nos terrenos baldios, nas ruas, mesmo em ladeiras, com os limites riscados a giz ou tijolo, ou simplesmente invisíveis, tema constante de teimas e atritos – foi fora! não foi!! –, e, ainda, nos espaços domésticos de casas e prédios, próprios para o treino solitário de fundamentos ou para formidáveis pelejas entre miniequipes – três contra três, dois contra dois, um contra um, rebatida/drible. Estas se jogam em quintais, nos corredores que separam construções de muros, ou dentro das casas, com bolas menores, como as de pano, nos corredores que levam da sala ao quarto dos fundos, tomando como gol os batentes das portas ou o espaço entre as pernas de uma cadeira, infernizando a vida das mães, pondo em risco janelas, espelhos, móveis e toda a miuçalha quebrável da qual nos cercamos.

Do clássico no Maracanã – a arena – às embaixadinhas solitárias, o futebol expressa nossa capacidade de criar jogos, estabelecer regras e submergir dentro delas. E que ele tenha algo da ciência da conquista não é um detalhe irrelevante, que ele suponha táticas, estratégias, astúcias, força física e ardis para que um grupo vaze a meta defendida pelo outro é um sintoma do quanto ele é transcendente, é o porquê de os times serem chamados de nações. Por isso, quando Eduardo Coimbra traz suas pinturas, que também são esculturas, que também são maquetes de novas e imaginárias configurações do futebol, ele está jogando com a arte ao mesmo tempo em que está jogando com nossa capacidade de conceber jogos; no caso, ampliando nosso jogo mais amado. Igualzinho ao que fazemos com nossas vidas, sem tirar nem pôr.

2014

obs: texto escrito para o catálogo da exposição Futebol no Campo Ampliado, realizada no Paço Imperial, Rio de Janeiro, em junho de 2014



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