Luz natural
Milton Machado

Nivelemos por baixo: o céu não é o limite. Depois do céu ainda tem chão, um infinito que é chão. O infinito sim, é limite. Mas não o, em absoluto: apenas um, um qualquer. Limite negociável, como o infinito em Blanchot: "O infinito se destaca do finito apenas como a incapacidade do finito de terminar de terminar… mesmo o absoluto, em sua afirmação imensa e solitária, leva a marca daquilo que nega, já que o absoluto é a rejeição de toda solução, o rompimento de todo vínculo e de toda relação… O infinito se constitui em relação ao finito, como sua negação-inserção (o infinito é o não-finito como é também in-finito).(1)

Pois sigamos nesta direção. Qual? Pretender que sigamos na direção do infinito seria tão duvidoso quanto afirmar que haveria luz natural. E no entanto, que seja: da luz.

O trabalho é um Istmo (1992), uma primeira abertura na direção dessa luz. Uma janela minúscula é relativamente minúscula, pois o que enquadra e revela é infinito, o imenso lá for a de um céu. Num canto negociável (não é este um nosso primeiro plano?) do infinito que é chão, alguém pousou suas malas, três, fechadas, para viagem. Não é certo que sejam de pai mãe e filho, bagagem familiar; mas poderíamos arriscar que se trata de um vôo doméstico. Mas que vôo (sabemos que nosso plano final não leva a nenhum terminal), se a tal janela, tosca, simplória e de pau, não é de nenhuma aeronave? É caseira, doméstica, janelinha do lar.
Menos aéreo ainda é aquele céu: ou não tem nada de infinito ou não soube negociar, tomando deste aí nenhum outro valor senão a prova de que o infinito, grosseiro, não passa de falsificação. Nem sequer se move este céu, pois é branco e azul fotográfico, nuvem e céu de postal. Portanto é pele, película. Daí, e só por aí que essa janela revela: tudo é interior.

As malas também são de pele, as malas também são da terra, as malas também são do lar: respiram, ronronam domesticadas qual bichos de estimação. Há algo ali dentro animando essas feras. Corrijo, dizem que os animais não têm alma: há algo aqui for a animalizando essas malas. Mas ali dentro e cá for a perdem o sentido quando não há direção.

[Não são as malas que estão aprisionadas, nós é que somos presas. São como os minotauros. Prendem o homem aos labirintos dos quais são guardiões (é por essa falta de sentido que perdemos a cabeça quando viramos feras). O mesmo com os animais de estimação: fazem de tudo para impedir que os donos deixem o lar. Mesmo assim, será preciso abrir essas bagagens (pesadas, são nossas cargas) em alguma remota baldeação para liberar de nós mesmos nossa animalidade. Pois não é a animalidade liberada justamente quando o humano se ausenta?]

Ah, finalmente um terminal! O mesmo que acende este céu pregado àquela parede amarra estes bicharocos que são puro mal-estar ao chão desta sala-de-estar. Cativos da rede elétrica, luz e respiração são artificiais. Nossa viagem, agora, é por um fio.
Ainda mais que istmo é um fio-terra, fio da terra que é preciso desligar. Foi preciso suprimir-se o istmo que ligava (o céu, o desejado?) ao continente indesejável para que se chegasse à Utopia (Morus). Não fosse a utopia um lugar finito jamais poderíamos desejar ou pretender marcar nossos encontros em algum lugar do infinito. No entanto, o não-finito é igualmente in-finito: a ilha ainda sempre nos remeterá ao continente. Mesmo nos labirintos: tudo é exterior.

Pois eis aí, doméstico, o final dessa viagem: depois da utopia tem chão. Negação e inserção: seria aquele céu um lugar-onde-quer-chegar alguém que não sabe se quer (sequer onde quer) chegar?

Contagem regressiva: deixemos de lado os artefatos explosivos apreendidos na alfândega que qualquer dia desses jamais explodirão. Soltem os cachorros farejadores! Alarmes! Detectores! Ameaça-nos a mordida de outra raiva animal.

Este cão não é fotográfico, mas também atua por vias do negativo. Ce chien ne marche pas. Ce chien marche un pas. Passos Silenciososs ou é uma gestalt canina ou esse trabalho é infantil. Este cão está tão nu quanto está nu aquele rei da roupa nova (curioso que Passos Silenciosos tenha sido exposto justo no Paço Imperial). Ou seria como nos cartoons (embora o que menos se pode dizer do personagem é que seu desenho seja animado): quando o bicho dispara em fuga o pêlo fica para trás. Este cão sem corpo sem coração que marca passo estacionado é pura carroceria. E mesmo assim é motor.
Ali ao lado deixaram um monte de sal, ali olhando secando a carne de cão. Este cão, que é econômico, não deixa marcas no chão. E mesmo assim é motor. É desse motor que não pega aquela pegada no sal. Não pega mas corre atrás. Somos nós a sua presa, há algo ali animalizando aquela marca humana de pé. E isso é repetição.

guia-nos um cão treinado ligado piloto automático de novo lá vamos nós na direção do infinito às cegas o céu de nuvens branco azul de postal película ali no sal que a marca deixada no chão de guarda no labirinto de minotauros viramos feras por essa falta de sentido se esta marca é de um passo onde foi parar nosso outro pé?
(por essas repetições é que perdemos a cabeça)

Cão passivo e doente, mas somos nós os pacientes.

Foi parar numa muleta, prótese de perna de pau, que pisca de vez em quando, direita depois esquerda, respira de vez em quando, sístole depois diástole. Que nem o carro do desenho animado: Rrron-rrron-rona. Mas as rodas ficam para trás.

Ainda desta vez a luz é presa. Sob essa luz doméstica e artificial nossa morte neste cão é natural.

[Lorenzo Ghiberti, “Comentários”, 1447-55: “Nessuna cosa si vede senza la luce”]
[Heisenberg e o “princípio da incerteza”, 1927: o que percebemos não é a coisa em si, mas o efeito da luz incidindo sobre aquilo que necessariamente iluminamos para ver. A luz empurra e faz mover. Não há certeza se o que temos é referência de posição ou de velocidade. Não há mais a separação entre o observador e o mundo observado, como na época áurea da física clássica.
Mas o que se dá quando o que procuramos ver é a fonte mesma da luz, fonte natural de luz natural?] Aí mesmo é que ficamos no escuro.

Se as malas-bombas-relógio contrabandeadas da outra sala não explodiram até agora… nem todo vulcão é extinto

(alguns são de tirar o chapéu)
(outros vestem a camisa)

Paisagem-erupção (1997) não trata de um vulcão qualquer. Se é que parece um bolo, seria uma celebração do lar. Tem mesmo um quê de casa grega, este edifício – melhor, este arranha-céu – que é todo planta, corte e elevação (visto em perspectiva, é explodida). Hermes monta guarda nos umbrais. Héstia no centro da sala, onde deve haver uma lareira. Todo aceso, este vulcão. Mas, de novo, nem a luz é natural, nem o que leva é lava. Escorrega por essas encostas uma luz fria.
Encosto: não é o que se pode dizer se o deus é grego, alto astral e vibração. Mas o fato é que o céu encosta no chão. Hermes, mensageiro e masculino, não leva a nada, nem teria o que levar. Héstia, protetora e feminina, não tem do que resguardar. Todo vôo (e todo coito, quando se veste a camisa) aqui é interrompido porque o céu deste vulcão já é interrupção. Céu de fotografia: revelação [interrupção] ampliação. O que o céu deste vulcão revela é que o céu não é olímpico, e o deus é inferior. O que o céu deste vulcão amplia é que a vertigem deste abismo é leve indisposição.
“…a incapacidade do finito de terminar de terminar…”

Inútil, essa paisagem. Pros diabos que o carreguem, este vulcão!

É por essas e outras que essa moeda Sem título (1998)
(2) de dupla-face viciada que mostra sempre a mesma cara é a única que pode servir a nossas negociações ininterruptas com o infinito trapaça (ao contrário do rei pelado que só exibe a coroa). Negociações a troco de nada a título de coisa nenhuma. Por debaixo da mesa: nuvem que passa por baixo de chão que passa por cima de céu que se faz passar por nuvem que passa na cara o chão. Nem este chão ali riscado a lápis (duro!) pode tirar do buraco o céu caído craquelé inadimplente. Jogo de cortes (de luz) sem dobras ( ). Luz escusa, negócio artificial: nem mesmo a maior transparência garante a menor liquidez.
E aqui também, o coito é interrompido. Nem isso, porque esses seres de terra e de ar não copulam, não transam, mal negociam. Reproduzem por fissiparidade, por isso são pura fissura. Céu e chão quase protozoários.

In-útil. De um tipo que vive em curto este interruptor em ON que liga em OFF.

Céu e chão em estado de choque. Até darmos de cara na parede com estes Desenhos (2000) em Braille.

Em branco. Mas não são desenhos para se ver no escuro. Mais do que necessário, é natural que alguma luminosidade exterior – luz cachorra – nos guie e faça mover por estes interiores de sombras para que se tornem salas, halls de entrada, degraus de escada, janelas relativamente portas, tetos relativamente chão, indícios de alguma clara arquitetura. Só aí os labirintos terão sentido e direção, e poderemos finalmente reconhecer que são de nossas patas as pegadas, de nossas garras as feridas rasgadas no chão. Dá raiva: a luz é artificial porque é humana, feita. Esses desenhos feitos de fios. É o fio de Ariadne que constrói o labirinto. Quantos mais caminhos os fios perfazem, mais o labirinto é perfeito. Estes desenhos, sim: brancos; mas são animados.

Estamos zerados, sem perdas. Nada é deixado para trás. Voltamos ao infinito de partida. Ainda que seja: da luz.

De outras janelas. Duas. Abertas para a viagem. Ambas de pele, película, e imensas, relativamente. Mas não são nem toscas nem de pau (quem não sabe exatamente o que fazer do céu, quando o faz, faz exatamente).

Uma, Imagem Aérea (2001) – para Yves Klein? – pode fazer durar para sempre o céu de nuvens: todo esse céu de anil é de vinil, matéria de long-playing (só que, todo arranhado a garras, há riscos de interrupção há riscos de interrupção há riscos de interrupção e de repetição). Qualquer “salto no vazio” jamais terminaria, um corpo lançado neste espaço cheio de repetição jamais se espatifaria. E mesmo assim ainda há riscos de perdermos a cabeça, de perdermos os sentidos porque o chão é o ponto de partida para este céu vertical feito infinito feito chão na horizontal. Este céu sem lado B de dupla-face que mostra sempre a mesma cara é puro efeito, um feito de mimetismos: é mais fácil ver terras, mares, continentes, ilhas, istmos, passos, vulcões, paisagens em erupção do que o próprio céu e nuvens neste branco-azul camaleão. Todo esse infinito é terra-firme. Infinito feito chão porque não soube negociar com o céu que não se move o firmamento.
Pode durar para sempre. Menos mal, porque apesar do céu encoberto, o tempo é bom.

Outra janela, Luz Natural (2001) – para Dan Flavin? – liga o imenso lá for a ao “minimal” aqui dentro por meio de um reator. Não, mais do que um, por infinitos (que são) reatores. Por isso o ar é rarefeito, o meio é eletrizante, e a vertigem uma reação em cadeia. Aqui por detrás dessa grade a falta de ar é mais do que leve indisposição.
Só que ar é justamente o que não falta, é de ar tudo que não é feito de céu. Só que céu é justamente o que mais falta, tudo que é céu foi deixado para trás nesta janela. Com perdas, naturalmente. De frente só mostra a cara esta luz fosforescente. Luz de encosto, branca e azul de película. A fotografia é a prova: este céu cheio de gás é de contato e adimplente. Portanto, mantenhamos distância: desta luz fria que queima mesmo sem ser incandescente. A luz só é natural quando o infinito é de vela.

2002

obs: texto escrito para o catálogo da exposição Luz Natural, realizada na Galeria Cândido Portinari, UERJ, Rio de Janeiro, em janeiro de 2002

notas:

1 Maurice BLANCHOT, The Writing of the Disaster, tr. Ann Smock, University of Nebraska Press, Lincoln/Londres 1992

2 Ver também Limite (2006)



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