O museu:observatório
Renata Marquez

Um jardim é doméstico e improdutivo: nem savana (ou tundra ou matagal) nem horta (ou seara, pomar, viveiro de plantas). Nem tampouco terreno vago, que denotaria abandono. Exige muitos cuidados e nada promete em troca, salvo um prazer que o granizo ou a seca ou um excesso de seiva facilmente arruínam. O jardim instala no espaço rude uma minigeografia bem arrumada, ligeiramente desligada da natureza. O homem o criou não para a sua subsistência, mas para seu deleite. O jardim é inútil e cobiçado: exatamente as duas características pelas quais os que não são artistas facilmente reconhecem as obras de arte.(1)

Coincidir jardim e obra de arte é uma estratégia que nos leva a pensar em pelo menos três aspectos: primeiro e imediatamente, há a experiência do deleite artístico; depois, há a problematização do museu como caixa-forte; e, por último, percebemos a prática multidisciplinar inerente à dedicação diária que a existência do jardim solicita. Deleite, júbilo e beleza são palavras que, não sem um sorriso de curiosidade, aparecem nas muitas conversas com os visitantes. Nada inesperado: no decurso da história, tais palavras tradicionalmente associam-se à experiência humana da paisagem – mas não à prática artística recente. Distinta de "realidade", "entorno" ou "natureza" porque, mais profunda, múltipla e ficcional, a paisagem temporariamente intrusa no Museu materializa a ficção da paisagem, dá bela forma ao seu discurso cultural e aproxima-se dos espectadores destrancando o museu mausoléu.(2) Um cheiro de grama fresca invade o salão, uma atmosfera nova modifica a temperatura e caminhar, sentar-se ou deitar-se na grama permitem a prática dinâmica e subjetiva dos pontos de vista paisagísticos, uma problemática encarnada, ao longo de séculos, por geógrafos, naturalistas, viajantes e expedicionários em geral. O visitante passeante conduz-se a si próprio no intuito simultâneo de exploração e descanso.

Coincidir jardim e obra de arte forçosamente aproxima universos díspares do pensamento. Travessias podem dar-se, a partir da obra-jardim, entre diferentes campos do conhecimento. Aproximam-se natureza e cultura, interior e imprevisíveis exterioridades, artista e cientista, equipe de montagem, cupins, carrapatos e capivaras. Certo cientificismo paira sobre a exposição, mas de uma maneira surpreendente: criando uma linguagem científica de acesso livre e direto, sem ser um dialeto para poucos, e possibilitando uma experiência imediata de encantamento e adesão. O trabalho de Eduardo Coimbra oferece a formulação in situ do conhecimento acerca do conceito de paisagem. E interessa aqui tanto a formalização artística e crítica da teoria geográfica como o compartilhamento de tal conhecimento.

Trata-se de uma estratégia simples porque direta, mas que pede tempo, um tempo próprio e inexato, mais ou menos previsível, levemente controlável. Depois de quarenta dias de cultivo atento no terreno em frente ao Museu, novas travessias podem acontecer sobre a grama-desenho, protagonizadas por aqueles curiosos ou hedonistas que aceitam o convite de experimentar a condição sensitiva daquela natureza domesticada. O simulacro hipócrita de preservação ambiental "não pise a grama" é invertido docemente, junto com o "proibido tocar", "proibido sentar", etc. Tocar a grama é lembrar-se hapticamente da existência da natureza: em tempos de especulação imobiliária e impermeabilização desenfreadas das cidades - acredite! -, vale muito o contato com um tapete de grama… No Museu:observatório, a atividade de contemplação perde em passividade o que ganha em complexidade. Fica claro que encarar a paisagem significa dirigi-la e lidar com as consequências de tal engajamento.

O processo de concepção, maturação e produção da exposição de Eduardo Coimbra no Museu de Arte da Pampulha coloca todos os envolvidos em contato com diversidades do mundo animal e vegetal. Um campo de provas que expande o Museu para outros terrenos, que desdobra as suas atividades e os conhecimentos técnicos em direção a territórios alheios, que envolve especialistas de outras áreas. A incerteza dos resultados, bem como a ameaça constante das intempéries, exigem a multiplicação de vocabulários e práticas. De inimigos a serem combatidos (cupins e carrapatos) a simpáticos habitantes da região (capivaras), o espectro de atuação do museu se vê radicalmente aberto. A obra-jardim mostra-se um tableau vivant que, em vez de atores humanos que protagonizariam a cena, deve fazer funcionar, com eficiência, um microcosmo secreto para a constituição da imagem viva.

A preparação da terra, o recorte dos tapetes de grama, a solução para a fabricação dos pixels verdes – como Eduardo chama os copinhos de grama –, o plantio desses milhares de copinhos plásticos e a necessidade do cuidado de jardineiros trazem desafios renovados diariamente. Atingir a capacidade de campo do solo, pulverizar adubo, aplicar inseticida, borrifar água, refrescar, podar a grama, notar áreas de folhas enroladas (sinal de falta de água), impedir que os cupins devorassem a obra, proteger-nos a todos dos carrapatos que, naquela época de seca, abundavam na terra. E observar atentamente a presença da família, cada dia mais numerosa, de capivaras com paladar aguçado que se alimentam de grama esmeralda ou zoysia japonica, uma das espécies mais resistentes a pisoteio.

Essa situação-laboratório reflete muito bem a noção do Museu:observatório. Transposto para dentro do Museu, o gramado encontra-se num ambiente controlado, absolutamente científico, naturalmente artístico. Um lugar que provoca o ato de contemplar o jardim e de contemplar a obra de arte, demonstrando – sim, tal qual um estudo empírico! – que na contemplação não há passividade e, sim, a atuação singular de cada um. Se a paisagem é uma criação dos seres videntes, ela é, entretanto, um desdobramento metaótico da retina, uma habilidade de quem vê, mas também um instrumento de quem imagina. A paisagem é também projeto de espaço. Ver e imaginar são uma somatória que faz parte da plataforma mental do olhar. A exposição nos mostra que a paisagem não consiste numa mera captação, pelos sentidos, de uma exterioridade, mas sim de uma formulação íntima. Se a perspectiva instaurou a máquina de olhar a paisagem, a criação de um elo entre as coisas, o Museu:observatório promove a tensão in situ e in visu, paisagem-lugar e paisagem-linguagem.

Do alto de observatórios históricos, vemos o entorno, o cartografamos, o mesuramos, o isolamos e o classificamos para decodificá-lo – e ao mesmo tempo para codificá-lo. Novos códigos de linguagem nascem do exercício da observação: trata-se, como escreveu Julio Cortázar em visita ao observatório de Jaipur, da "[…] migração de um verbo: discurso, decurso, as enguias atlânticas e as palavras enguia […]".(3) O observatório constrói-se sobre o desejo de situar-se no mundo e verbalizá-lo (ou matematizá-lo), desdobrando olhar em fenômeno, fenômeno em signo ("palavras enguia": entes científicos sempre migratórios).

A atividade de observar implica certa ascensão, num primeiro momento e, depois, implica interiorização. O observatório é definido como uma estrutura espacial que busca reunir o olhar e o conhecer. Ele abarca o ato imediato de ver, mas, simultaneamente, o esforço prolongado de estudar e de nomear. Nesse processo, ocorre o rebatimento do lugar exterior no lugar interior. "Observar não é olhar, mas olhar, escutar e tomar notas; isolar, construir um laboratório com o olhar e identificar as chaves da nossa relação com o meio físico"(4), salientou Iñaki Ábalos.

A singularidade do edifício do Museu de Arte da Pampulha, localizado na parte mais alta da orla da represa artificial, favoreceu a sua apropriação como observatório. Um museu que, desde a sua pré-história como cassino, nunca se separou da sua paisagem suplementar. Seus limites translúcidos, a promenade arquitetural prometida pelo projeto moderno e a sua inserção no paisagismo de Roberto Burle Marx sempre potencializaram, no edifício, esse laboratório com o olhar. Mas no Museu:observatório amplifica-se, evidencia-se e problematiza-se essa potência: a função do edifício torna-se ambígua enquanto os seus limites são rasurados.

A palavra museu associada à palavra observatório sugere a transmutação do Museu em uma nova coisa. Quase um acúmulo de funções aparentemente contraditórias, mas só aparentemente. "O observatório é um lugar tanto físico como mental: uma tipologia e uma fantasia a partir da qual podemos começar a cartografar novos atlas".(5) E aqui se encontram ciência e arte, no exato ponto de dúvida constante e do contemplar investigador, autocrítico, propositivo. O desafio a ser enfrentado é ser capaz de ver essa dinâmica e de escrevê-la sob novas linguagens, atualizando o decurso do verbo e reinventando as práticas ambientais.

Nos seus interstícios, o museu-jardim parece abrir o diálogo com o terraço-jardim modernista. Ambos os espaços refundam utopicamente a noção de coletividade entre as pessoas e a instauração, ainda que pontual, da convivência entre natureza e cidade. Entretanto, o artifício é a estratégia adotada em ambos os casos. Podemos observar, de fato, que a grama no Museu é mais artifício do que natureza, mais desenho do que descontrole, mais arquitetura do que mata. O gramado é a natureza homogênea, plástica e civilizada como um tapete suscetível ao contato e ao uso como superfície, ainda que feito da materialidade daquilo que representa. Um artifício nômade (porque reinstalável) capaz de transformar cada espaço e as suas perspectivas.

O artifício faz-se presente no Museu como o duplo inseparável do natural. A qualidade reflexiva do espelho d’água, um recurso clássico na constituição da paisagem pitoresca e nos projetos modernos, retorna sob a forma dos muitos planos de espelho instalados no Mezanino. E a condição de transporte das coisas ou de passagem de um lugar a outro, inerente a qualquer espelho, desestabiliza repentinamente a tectônica do lugar. Como utopia ou heterotopia, a paisagem é feita imagem crítica, desmaterializando-se ali mesmo.

O espelho é, afinal de contas, uma utopia, uma vez que é um lugar sem lugar algum. No espelho, vejo-me ali onde não estou, num espaço irreal, virtual, que está aberto do lado de lá da superfície; estou além, ali onde não estou, sou uma sombra que me dá visibilidade de mim mesmo, que me permite ver-me ali onde sou ausente. Assim é a utopia do espelho. Mas é também uma heterotopia, uma vez que o espelho existe na realidade e exerce um tipo de contra-ação à posição que ocupo. […] A partir deste olhar dirigido a mim próprio, da base desse espaço virtual que se encontra do outro lado do espelho, volto a mim: dirijo-me o olhar e começo a reconstituir-me ali onde estou. O espelho funciona como uma heterotopia neste momentum: transforma o lugar que ocupo no momento em que me vejo no espelho num espaço a um só tempo absolutamente real, associado a todo o espaço que o circunda, e absolutamente irreal […].(6)

A transparência das esquadrias pivotantes, através das quais facilmente se encontraria a paisagem, é totalmente substituída pelos planos virtuais dos espelhos, capazes do exercício do deslocamento utópico e, ao mesmo tempo, do questionamento heterotópico. Foucault escreveu que, enquanto as utopias consolam, as heterotopias inquietam (7). Forma-se um lugar inquieto, embora sutil – e até lúdico, de certa maneira –, no qual os materiais e a paisagem reaparecem como signos volantes que deixam o espaço protagonizar o grande tema a ser observado, indissociável daquele que observa. Ficar ou fugir? Desejar ou transformar? Mira ou miragem? Abismos heterotópicos são construídos sobre os limites dos panos de vidro (ou dispositivos de olhar com segurança e conforto), abismos que funcionam como espécies de barreiras para que não seja mais possível ver passivamente a paisagem. O visitante tem a chance de experimentar um olhar estrangeiro similar ao viajante que descobre novas paragens: proposta do jogo de reconhecimento ou redescobrimento do lugar ocupado naquele momento.

Fantasmagorias desse lugar são produzidas, demonstrando, mais uma vez, que a paisagem é menos matéria e mais ideia, menos natureza e mais artifício, um fato cultural herdado e reproduzido. As mesas de jogos que ocuparam o Mezanino na época em que o edifício era um cassino, antes da proibição dos jogos de azar no Brasil em 1946, assombram os bancos. Sem deixar vestígios fotográficos, tal ocupação foi apenas relatada por testemunhas: sabe-se que no Mezanino havia mesas circulares de um lado, usadas para o jogo de cartas, e mesas retangulares do outro, ocupadas pelas roletas. Informação que inspirou a forma dos objetos que emergem do piso, feitos da sua materialidade mesma: tacos de madeira e espelhos. Fantasmagorias que surgem sob a forma de objetos (re)utilitários que multiplicam fragmentariamente o lugar. Jogos da lembrança (esse verdadeiro dispositivo de criação de imagens) revertidos nas novas sociabilidades possíveis – de mesas desaparecidas a bancos para os visitantes. As obras de arte, nesse caso, são naturalizadas no nosso campo de visão como quase invisíveis. A intervenção, plenamente camuflada no espaço, assim é apresentada àqueles mais atentos.

A paisagem-imagem entra em cena no Museu através do exercício da camuflagem. Camuflando-se no espaço, ocultando-se, substituindo aqui a sua presença ali, replicando-se, refratando os acontecimentos que nela se dão, ela oferece mais duas outras propostas de experiência in situ, distintas do gramado, acerca da sua definição geográfica. Por um lado, mais discreta, como vimos, transformada por dispositivos móveis – bancos, janelas manipuláveis e estilhaços planejados das esquadrias, dispostos na única parede opaca ou no piso – a paisagem desloca-se pelo edifício, travestindo as superfícies e problematizando a sua própria existência. Por outro, repondo-se a si mesma com um conjunto de imagens fotográficas que substituem as janelas-visores e captam momentos dinâmicos de olhares. Nesse caso, a própria percepção é o que está sendo fotografado: toda a planura imaginada como constituinte da paisagem é espetacularmente substituída pelo espaço vivido pelo corpo na sua sucessão de instantes.

Na configuração circular do Auditório, uma espécie de diorama é instalada com essas imagens, replicando a situação panorâmica dali. O diorama, termo de Louis Daguerre que significa etimologicamente ver através, popularizado como estilo de exibição principalmente nos museus de História Natural na virada do século XIX para o XX, tinha a característica ilusionista da imersão, do ato de viajar sem sair do lugar. Um display para aguçar a percepção, a memória e a experiência obrigatória de pertencimento à paisagem. Se não existe paisagem, se não há alguém para vê-la – e aqui temos que discordar de Milton Santos sobre a definição de paisagem –, temos a oportunidade de nos sentir como num verdadeiro diorama: ambiente totalmente imersivo e extremamente provocativo.

Com imagens idênticas à paisagem que se encontra lá fora, poderosos backlights reproduzem vistas dessa paisagem coincidente com o exterior. Mas as imagens são apresentadas em pares, uma série de quatro imagens-par – a vista a partir de dentro e o duplo do que se vê do outro lado da lagoa, captados no mesmo instante. Essa parceria de imagens confere volume, profundidade e temporalidade à representação da paisagem. O momento retratado da dinâmica do ato mesmo de perceber constrói esse vazio por onde vagueia o olhar, onde o que vê encontra o que não é visto, num hiato imagético que fica perdido em algum lugar no itinerário da mira dos fotógrafos que participaram da produção desse trabalho, no dia 15 de setembro de 2011. Um dia antes, a orla foi cartografada: estacas vermelhas foram colocadas pelo artista nos pontos exatos estipulados para a observação recíproca – desde a laje do Auditório do Museu e desde o outro lado correspondente à visada do Auditório, nas margens da Lagoa da Pampulha.

As centenas de lâmpadas fluorescentes instaladas por trás da lona impressa e o seu apelo de imagem publicitária não enganam: a familiaridade com um outdoor é rapidamente revertida para o estranhamento indoors. Um jogo de análise e busca na imagem, ao estilo Street View do Google Earth, é empreendido; o registro dos fotógrafos nos seus postos de observação simultânea pode ser descoberto, após poucos minutos, dada a escala de impressão das imagens; e a imagem plana, em pares, é dotada de uma complexidade espacial que a expande e a torna, pela situação das perspectivas um tanto improváveis, mais visível do que a própria paisagem que podia ser observada, antes e desde sempre, há décadas, através daquelas janelas. Janelas temporariamente cegas que permitem a experiência da nova tipologia do Museu:observatório.

2011

obs: texto escrito para o catálogo da exposição Museu:observatório, realizada no Museu da Pampulha, Belo Horizonte, MG, em novembro de 2011

notas:
1  CAILLOIS, Roger. Jardins possíveis. In: LEENHARDT, Jacques. Nos jardins de Burle Marx. São Paulo: Perspectiva, 2000. p. 2. Publicado originalmente pela Editora Gallimard, em 1975
2  ADORNO, Theodor W. Museu Valéry Proust. In: Prismas, Crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 1998
3  CORTÁZAR, Julio. Prosa do observatório. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 13
4  ÁBALOS, Iñaki. Atlas pintoresco. Vol. 1: o observatório. Barcelona: Gustavo Gill, 2005. p. 124
5  Idem. p. 137
6  Extraído de Outros espaços, conferência proferida por Michel Foucault em 1967. In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001
7  FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. XIII 



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