Mas o que significa observar?
André Brasil

Comecemos pelo meio: dois pontos se interpõem entre o museu e o observatório e logo nos indagamos sobre o modo da relação que essa pontuação sugere. Não se trata de uma relação de identidade: estritamente, um museu não é um observatório. Por outro lado, essa não soa como uma aproximação fortuita, um agenciamento circunstancial: museu e observatório. A escolha dos dois pontos nos parece interessada em sugerir, entre um e outro, uma relação histórica que se atualiza de maneira singular na exposição de Eduardo Coimbra. A aproximação marcada pelos dois pontos – museu:observatório – indica mais precisamente algo como uma modulação: um termo – o museu – ganha uma nova modulação, transformando-se em algo que se lhe avizinha: o observatório.

Noutro contexto, em um ensaio no qual investiga o uso dos dois pontos por Gilles  Deleuze (1), Giorgio Agamben se refere justamente a uma relação de imanação (2): os dois pontos não fecham, nem encerram a relação em identidade ou em fusão. Eles "abrem" uma relação entre dois termos que não são nem totalmente iguais, nem totalmente distantes; uma relação de contiguidade e transformação: um mesmo que se torna outro por proximidade. Nos termos que nos interessam, podemos dizer que os dois pontos abrem o museu ao observatório; este se torna, em alguma medida, um observatório. Mas temos que dizer em complemento que o observatório já estava lá, presente, na definição mesma do museu. Digamos, então, que os dois pontos marcam a passagem do museu ao observatório, ressaltando o observatório que já estava presente, desde o início, no museu. Vejamos se a hipótese procede e como ela funcionaria aqui.

Comecemos por arriscar a ideia de que observar é uma secularização do ato de contemplar: espécie de prece, de oração por meio do olhar; contemplar significa mirar as coisas, as imagens, a natureza como quem mira a obra de deus; mirar o visível para alcançar o invisível; olhar, portanto, como quem ora (3). Contemplar nos coloca frente ao mistério, não ainda como objeto de conhecimento, mas como relação sensível com uma presença, diante da qual se deve, finalmente, baixar (ou elevar) os olhos, sempre em reverência (4). Sabemos que esse olhar não é ingênuo: há sempre um texto que subjaz ao fundo de toda contemplação, texto sagrado, que nos diz, por exemplo, que Deus criou o Céu e a Terra... De todo modo, contemplar significa estar separado – manter reverência – em relação àquilo que se contempla. Mas, também, em via oposta, se misturar ao objeto da contemplação, na medida em que ele está presente, diante de nós, e porta um mistério do qual também fazemos parte, do qual comungamos.

A contemplação seria assim uma espécie de gênese sagrada do observatório, que, nesse sentido, seculariza – arrisquemos – os mosteiros, as abadias, os conventos, os espaços de clausura e isolamento, que, tanto quanto voltar para dentro de nós mesmos, nos fazem olhar para fora, para a natureza, para o mistério da criação divina. Estreitamente ligados à constituição do campo científico, observatórios são dispositivos que tornam laico – institucionalizam e normatizam – o ato de contemplar, tendo em vista as novas demandas da sociedade moderna. Para tanto, constituem uma série de mediações que nos separam – física e simbolicamente – do objeto de contemplação, que agora pode ser chamado mais propriamente de objeto. À sua presença respondemos menos com evocação, reverência e vidência do que, digamos, com representação, desejo de esclarecimento e conhecimento.

Nesse processo de radical separação entre sujeito e objeto, a modernidade vai-se povoando desses dispositivos de observação. Sejam os dispositivos utilizados pela ciência, sejam aqueles reapropriados pelo entretenimento; sejam as pequenas maquinetas ou as grandiosas arquiteturas, eles participam de uma ampla transformação do olhar, que implica fundamentalmente sua mobilização. Em pelo menos dois sentidos, o olhar é mobilizado: de um lado, percorre e explora o mundo em busca de fragmentos que, tornados objetos, demandam investigação, conhecimento, disputam a atenção. O olhar torna-se móvel: aqui, vale notar com Jonathan Crary (5), a câmera escura deixa de ser o dispositivo modelo da observação, para dar lugar a uma série de outros que, dispersos e distribuídos, recodificam o olhar, buscando ampliar sua produtividade, conquistar e manter sua atenção, em constante gestão.

Assim, para tornar-se móvel (atendendo ao constante estímulo vindo dos objetos da natureza e do espaço urbano), o olhar precisa deixar-se mobilizar, atentar-se para um conjunto de normas, de procedimentos e posturas acionados por essa gama crescente de dispositivos (tecnológicos e institucionais).

Observar, nesse sentido, significa não apenas olhar para fora - o sujeito separado do objeto da observação - mas também olhar para dentro, de forma a respeitar – observar – as regras que uma observação interessada nos impõe. Como nos lembra ainda Crary em seu importante estudo, os espectadores observamos não apenas os objetos de nossa observação, mas também as regras e os códigos que regulam nossa conduta como observadores. Um espectador é também um observador, na medida em que olha no interior de um repertório de possibilidades, mergulhado em um sistema de convenções e limitações (6).

Um observatório (qualquer que seja) abriga assim, desde sempre, dois "graus" de observação: o primeiro grau se refere ao sujeito que – separado do mundo – o observa, fazendo dele objeto (como vimos, trata-se de um sujeito cuja atenção é variável, disputada por uma diversidade de objetos). Essa é acompanhada por uma observação de segundo grau, por meio da qual, ao observar o mundo lá fora, observamos (no sentido de cumprir, respeitar, introjetar) as normas que nos dizem como observar.

Levando essa proposição ao seu limite, diríamos que o observatório constitui tanto o objeto quanto o sujeito da observação: ele é um dispositivo que inventa a natureza (o "real") no mesmo gesto em que inventa a perspectiva, o modo de observar; inventa o objeto, no mesmo gesto, portanto, em que produz o sujeito da observação por meio da normatização de sua conduta.

Stricto sensu, o museu não é um observatório: aquele se dedica às obras de arte (ou, mais amplamente, aos acervos e às coleções), enquanto este se dedica à natureza, ao "real" e seus objetos. No entanto, em certo sentido, sim, ele é um observatório: como instituição moderna, o museu convoca, em suas práticas, os dois graus de observação, mais notadamente o segundo. Mais voltado para dentro, o museu é um observatório que se mobiliza internamente, estabelecendo as maneiras de se ordenarem os acervos, de se observarem as obras, assim como as relações entre elas.

O museu pode ser definido assim como uma primeira e ampla moldura que emoldura as molduras das obras, estabelecendo, antes de tudo, um limite entre um dentro e um fora, a partir de procedimentos de separação e distinção. Essa separação é o que permite talvez a Jacques Rancière dizer, em outro contexto, que o museu é o lugar de uma arte avarenta, alheia à riqueza sensível da experiência cotidiana, esta que – lá fora – vive das trocas, dos deslocamentos e das misturas (7).

Em segundo lugar, o museu estabelece as formas de organização, distribuição e as relações entre as obras, no interior de seu espaço (este que, sem essa distribuição, é um espaço vazio, que se quer neutro). O esquadrinhamento do espaço e a distribuição das obras – a organização interna do espaço – mobiliza também as formas de circulação e fruição da parte dos visitantes. Por fim, a organização interna do museu – seus critérios de separação e redistribuição – contribui para regular os modos de circulação e valoração das obras – como mercadorias – fora de seu espaço físico e institucional. Logicamente, essa moldura, esse dispositivo – aqui caracterizado apressadamente – varia no tempo e se atualiza de maneiras diversas de instituição para instituição. Mas, para o que nos interessa, reiteremos que a moldura do museu – que existe mesmo quando as obras transbordam suas próprias molduras expandindo-se no espaço – regula, portanto, o seu dentro e o seu fora, ao mesmo tempo, separando os objetos e os sujeitos da observação – as obras e os espectadores – e os constituindo mutuamente.

Tudo isso para dizer que, se o museu é, em alguma medida, um observatório, não o é apenas pelo fato de que ali nós vemos – observamos – as obras, mas, principalmente, porque essa observação precisa observar também os modos de observar (o que chamamos aqui uma observação de segundo grau): as categorizações, as distribuições, os roteiros de circulação dos visitantes, sua postura e conduta no interior do espaço.

Como enunciamos em nossa hipótese, o encontro entre estes dois dispositivos –  museu:observatório – promovido pela exposição de Eduardo Coimbra no Museu de Arte da Pampulha faz com que o primeiro se abra ao segundo na forma de uma modulação: o museu torna-se outro – torna-se um observatório –, mas esse outro já lhe pertencia desde o início como atributo. Se o museu é, desde sempre e em certo sentido, um observatório – observamos as obras assim como as normas para que essa observação se dê – aqui, a transformação do museu em observatório se realiza, primeiramente, pelo acirramento, pela intensificação desse processo em uma espécie de observação de terceiro grau: trata-se do que costumamos chamar, no âmbito da experiência moderna, de reflexividade. No caso da exposição de Coimbra, não apenas observamos as obras, observando as normas de conduta que o museu nos impõe, como também e principalmente nos observamos observando estas normas – estas que nos são tornadas visíveis, explícitas – por um gesto reflexivo. Na verdade, a obra se torna justamente essa observação da observação, essa percepção de que nossa observação não é nunca ingênua, mas sempre amparada, ou melhor, mobilizada por uma série de códigos, procedimentos, "regulagens". Provocado pela obra, nosso olhar se apercebe, então, como um olhar mobilizado.

Nesse sentido, a obra de Coimbra participa de uma genealogia de experiências que, a partir de estratégias reflexivas, voltam-se menos a criar obras a serem objeto de fruição nos museus (ou em outros espaços destinados à arte) do que a problematizar os modos como essa fruição é organizada, mobilizada pelas instituições.

O trabalho de Coimbra, contudo, acrescenta a esse olhar reflexivo, voltado para dentro da instituição, um olhar reflexivo endereçado ao fora, interessado na paisagem do entorno, em seus traços marcadamente modernistas. Em Planos de Passagem, no Mezanino do Museu, o visitante se depara com um espaço aparentemente vazio, sem qualquer obra a ser vista. Mas, aos poucos, ele percebe que esse vazio é pontuado por dobras e dobraduras que o modulam e o complexificam: as janelas ganham espelhos que, movimentados, produzem um jogo variável entre o dentro e o fora; o chão taqueado do museu se desdobra em bancos; por sua vez, a paisagem modernista, planificada e transparente do entorno – o complexo da Lagoa da Pampulha – entra no museu desconstruída por esse jogo de reflexos e refrações, ganhando assim certa opacidade. Por simples que sejam, essas pontuações produzem um desarranjo, uma leve desorganização do nosso modo de olhar e de nossa conduta no interior do museu: em primeiro lugar, reiteramos, não há "obra" a ser vista; em segundo lugar, não sabemos bem como nos portar no espaço (aparentemente) vazio; por fim, percebemos que se trata justamente disso: desorganizado nosso modo de olhar, somos levados a considerar como esse olhar é construído, mobilizado, normatizado: seja o olhar que se volta para dentro, introjetando as normas que nos indicam como apreciar uma obra de arte em um museu, seja o olhar que se volta para fora, ao cartão postal modernista do entorno, agora segmentado pelo jogo de frestas, espelhos e dobradiças.

Trata-se mesmo de um dispositivo-dobradiça que se volta tanto para fora quanto para dentro, rebatendo um espaço no outro, tornando-os problemáticos. O fora é problematizado naquilo que nos sugere de clareza, precisão, transparência, desejo de cálculo e controle. O dentro, por sua vez, se torna problemático como espaço institucional organizado, normativo, que se quer puro e separado da dispersão do fora (o cotidiano da cidade). Em diálogo, ambos os espaços são postos em questão por um olhar tornado reflexivo (uma observação em terceiro grau).

No Auditório, temos a obra Visível Invisível, um conjunto de oito painéis fotográficos, dispostos em forma circular, iluminados por backlights. Ali, a paisagem modernista do entorno do museu é fotografada, não sem que se inclua na imagem, em uma dobra sutil, o próprio ponto de vista do fotógrafo, do sujeito da fotografia. Trata-se de um panorama que realiza materialmente a fórmula reflexiva de um olhar que se vê vendo, de uma paisagem capaz de incluir em si mesma o próprio observador. A operação clássica de separação entre o sujeito que observa e o objeto da observação se complexifica com a entrada do fotógrafo em cena (fotógrafo que o dispositivo fotográfico habitualmente tende a manter invisível).

No primeiro andar do Museu, por fim (em nosso percurso invertido), Natureza da Paisagem "continua", no interior do prédio, o jardim do entorno do Museu, projetado por Burle Marx. Em um gesto simples, quase literal, a paisagem invade o museu, que passa a abrigar o gramado circunstancial. Mantém-se nesse caso a estratégia reflexiva, em um dispositivo que novamente articula – implicando – o dentro e o fora: em um olhar direcionado ao fora, ressalta-se o caráter construído, projetado do jardim, como natureza artificializada. Já o olhar direcionado ao dentro vê desestabilizada, circunstancialmente, a organização interna do Museu, com a "infiltração" (física e simbólica) da natureza (que sabemos, contudo, não ser tão natural assim). Essa desestabilização se dá não só por conta da entrada do jardim no espaço construído – um prédio histórico tombado –, mas pela exigência de novas práticas para cuidar de um material – um acervo – inusitado. Será preciso, ao longo da exposição, cuidar do jardim, tendo em vista suas demandas de luz, água e poda. Se interrompêssemos aqui nossa abordagem da obra de Eduardo Coimbra, a manteríamos em um registro moderno, o que não é de todo uma injustiça: afinal, como vimos, ela trabalha com estratégias reflexivas e comentários críticos aos códigos, normas e procedimentos institucionais (sejam aqueles internos ao museu, sejam aqueles traçados fora do prédio, em seu entorno modernista). No entanto, parece-nos pouco demandar hoje que uma obra seja reflexiva: há muito, tanto as instituições da arte quanto os espectadores (e também o mercado) se habituaram aos gestos crítico-reflexivos, dominando seus códigos e as estratégias para incorporá-los (muitas vezes, os anulando). Poderíamos então avançar para pensar como a obra de Coimbra sugere outros aspectos, para além dessa dimensão reflexiva. Em vários sentidos, ela parece indicar não apenas uma observação de terceiro grau – o olhar que toma consciência de sua mobilização –, mas uma intensa complexificação do próprio ato de observar (em sua configuração clássica ou moderna). Dito de outro modo, os ambientes criados por Coimbra nos levam a uma situação contemporânea, na qual transformam-se intensamente sujeito e objeto da observação, assim como a relação entre eles. De um lado, a natureza (objeto da observação) se projeta e se revela incontornavelmente como artifício. De outro, a dimensão normativa e cultural é naturalizada pelo sujeito da observação. De um lado, a observação participa e constitui o objeto observado (no limite, a observação inventa a paisagem). De outro, a paisagem age em nós reinventando normas e condutas; olhamos os objetos e somos olhados por eles, agimos sobre os objetos e somos agidos por eles. E, além de tudo, esses processos – antes alvo do pensamento critico-reflexivo – nos são, em grande medida, conhecidos, habituais, cotidianos. Ou seja: há muito nós aprendemos a conviver com esses híbridos de natureza e cultura que, para autores como Bruno Latour (8), proliferam na mesma proporção em que tentamos controlá-los, separá-los, purificá-los. Para além da reflexividade, a obra de Coimbra flerta assim com essa situação, que desconcerta tanto a observação quanto sua crítica. Situação que nos exigiria não exatamente uma atitude antimoderna, mas o exercício constante da observação, não mais como aquilo que nos separa do mundo, mas como algo que nos inclui e a partir do qual exercitamos, inventamos as formas de vida e as formas do comum.

Eis assim, quem sabe, a função dos dois pontos no título dessa exposição e que, efetivamente, diz muito do que os três trabalhos nos propõem: ressaltar o observatório que o museu já abriga em si, para comentar reflexivamente sua normatividade interna assim como sua paisagem externa, mas também e principalmente para mostrar uma transformação no próprio sentido do que seja hoje observar.

Como observatórios, serão os museus capazes de se abrir a essa transformação?

2011

obs: texto escrito para o catálogo da exposição Museu:observatório, realizada no Museu da Pampulha, Belo Horizonte, MG, em novembro de 2011

notas:
1  Trata-se do ensaio A imanência absoluta (AGAMBEN, 2000), que, por sua vez, se refere ao último texto publicado por Gilles Deleuze antes de sua morte: A imanência: uma vida... Educação & realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, jul.-dez. 2002. p. 10-18.
2  AGAMBEN, Giorgio. A imanência absoluta. In: Alliez, E. (Org.) Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 172.
3  Em Vida e morte da imagem (1994), Régis Debray ressalta a gênese mágica ou sagrada da imagem, esta que, funcionando como ídolo, torna presente (visível) a divindade (invisível). O autor recusa-se a denominar contemplação essa prática, na medida em que o olhar e a percepção não são seu principal critério. "O poder da imagem não está em sua visão, mas em sua presença." (p. 221-222). Se continuamos adotando aqui a noção de contemplação, é em seu sentido alargado, compreendendo uma prática que envolve o olhar, o engajamento corporal e um regime de crença.
4  DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem. Petrópolis: Ed. Vozes, 1994, p. 62.
5  Cf. CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: on vision and modernity in the nineteenth century. Cambridge/London: MIT Press, 1992. Em outra chave, ver ainda a discussão de Jacques Aumont - O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
6  No original: observare means "to conform one's action, to comply with", as in observing rules, codes, regulations, and pratices. Though obviously one who sees, an observer is more importantly one who sees within a precribed set of possibilities, one who is embebed in a system of conventions and limitations. (CRARY, Jonathan. Techniques of the observer, Cambridge/London: MIT Press, 1992, p. 5-6).
7  RANCIÈRE, Jacques. A política de Pedro Costa. In: Cabo, Ricardo (Ed.). Cem mil cigarros: os filmes de Pedro Costa. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.
8  LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.



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